(por: W. B.*)
“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”
(art. 5º, XI ,Constituição Federal/1988)
No sábado 11 de dezembro de 2010, eu estava tendo uma aula de Direito Constitucional num curso preparatório para concursos públicos. Ela versava, dentre outros assuntos, sobre a inviolabilidade da casa.
Ali tive oportunidade de rever conceitos que aprendi na faculdade e que revisitei na época em que prestei prova para o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Fiquei tentando focar os aspectos mais técnicos do tema, pois meu objetivo naquele momento era assimilar bem o que pudesse me ajudar a ser aprovado. Porém mesmo assim não pude evitar perceber, na explanação do docente, uma argumentação curiosa – que, na verdade, reflete a ideologia da corporação que ele integrava (o cara era policial civil). O que achei intrigante foi a explicação da base jurídica usada pela Polícia Civil para ter entrado, sem ordem judicial, na casa de vários moradores da Vila Cruzeiro, conhecida favela da zona norte carioca, naquela semana.
A argumentação consistia no seguinte. Quando se iniciou a incursão das forças repressivas na comunidade, havia evidência de que inúmeras pessoas estavam cometendo crimes. Logo, toda a região foi considerada área em que há flagrante delito, o que justificaria a entrada da polícia em qualquer dos barracos da localidade. O fato de não ter havido interrupção na ocupação do morro pelos policiais, corroboraria a tese de flagrante, não importando o tempo transcorrido entre a ciência da infração e a entrada forçada da polícia em qualquer moradia dali.
Hoje, pesquisando na internete, vejo que a Ordem dos Advogados do Brasil aqui do Rio (OAB-RJ) elogiou pra caramba a invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, naquela época. O Judiciário não se opôs também ao modo de operar da polícia, no que se refere a se entrar à força nas residências. Mais tarde, até vieram algumas críticas isoladas em relação a furtos e agressões, praticadas sobretudo por alguns policiais militares; entretanto não encontrei nenhuma crítica à entrada forçada em domicílios da Vila Cruzeiro ou doutras favelas fluminenses, naquele período.
O tempo passou. Prestei o exame para o qual estava estudando. Tive excelente resultado em Direito Constitucional, mas ainda assim não obtive a almejada classificação: nada de se admirar, tendo em vista a crescente dificuldade dos concursos públicos no Estado do Rio de Janeiro. Meu bom resultado em Constitucional se deveu também às tecnicamente competentes lições daquele professor, perfeitamente imerso na lógica dos concursos públicos jurídicos e no pensamento dominante no Direito que norteia essas provas (e o próprio funcionamento do Poder em suas três esferas – Legislativo, Executivo e Judiciário).
Alguns anos depois, ocorreu um fato bastante intrigante que me remeteu novamente à questão da inviolabilidade da casa.
No sábado 13/07/2013, casavam-se Beatriz Barata e Francisco Feitosa Filho. O acontecimento foi ironicamente chamado de “O casamento de Dona Baratinha”, por integrantes de movimentos sociais que resolveram protestar na porta da Igreja do Carmo, Centro da cidade. A manifestação inscrevia-se no contexto dos diversos atos públicos ocorridos a partir das agitações populares contra o aumento de preço das passagens de ônibus pelo país inteiro naquele ano.
A noiva Beatriz Barata é neta de Jacob Barata, considerado o “Rei dos Ônibus”, no Rio. O que os manifestantes denunciavam era o fato de toda a ostentação do casamento ser sustentada pela exploração privada de um serviço público: no caso, o transporte coletivo, que deveria se orientar para a satisfação das necessidades do povo e não servir para luxos e lucros estratosféricos duma minoria. Até o sítio eletrônico do jornal reacionário O Globo, em reportagem do jornalista Rubem Berta, admitiu em 15/07/13: “Casamento de neta de Barata pode ter custado R$ 2 milhões”.
O protesto bem-humorado consistiu na exibição de cartazes, na distribuição de baratinhas de borracha, na repetição de palavras de ordem denunciando a máfia dos transportes. Alguns convidados milionários ofereceram “esmolas” aos manifestantes, não se sabe se por provocação ou por ignorância do que aqueles não-ricos estavam fazendo ali em frente a um casamentos de magnatas.
A manifestação continuou em frente ao suntuoso Hotel Copacabana Palace (na Av. Atlântica, zona sul carioca), onde ocorria a festa de casamento. Lá, Daniel Barata, sobrinho do “Rei dos Ônibus”, arremessou aviõezinhos feitos de notas de R$20,00 para os manifestantes. A atitude debochada tinha certamente o objetivo de “xingá-los” de pobres (demonstração nítida do preconceito da elite, segundo o qual o valor das pessoas está associado a suas contas bancárias). Os manifestantes, entretanto, não responderam às provocações.
Depois disso, um cinzeiro de vidro, arremessado do hotel, atingiu a cabeça do estudante Ruan Martins Nascimento, de 24 anos.
Segundo reportagem publicada no sítio G1 em 15/07/13, o estudante ferido buscou adentrar o Copacabana Palace para tentar identificar o autor da agressão, com o auxílio de um advogado que estava na manifestação e dum policial militar do 19º BPM (Copacabana). No entanto, eles foram barrados pela segurança do hotel.
Como não entraram no estabelecimento, não foi possível fazer a identificação imediata do agressor (que só foi feita depois, por foto, como sendo Daniel Barata). O suposto criminoso veio a declarar posteriormente que naquele horário nem estava mais na festa, coisa que não poderia alegar se fosse flagrado lá dentro e imediatamente identificado.
É verdade que o Direito brasileiro considera como casa qualquer compartimento fechado de acesso restrito ao público, e que esta é asilo inviolável do indivíduo (mesmo não-proprietário). No entanto a proteção à casa não é absoluta e, assim, a própria Constituição Federal de 1988 determina – no inciso XI de seu artigo 5º – que se pode penetrar na casa dos outros nas seguintes hipóteses: por determinação judicial durante o dia; com consentimento do morador; para prestar socorro; em caso de desastre; se houver flagrante delito. Isso significa que na ocorrência de flagrante não é necessário mandado, nem que a incursão seja feita durante o dia. Como é, então, que um policial acata a “proibição” dum segurança privado e deixa de entrar no hotel num caso típico de flagrante delito?
Pessoas mais inocentes podem supor que essa postura tem a ver com um desconhecimento por parte do policial. Tal não corresponde à realidade, no entanto. É muita pretensão nos acharmos tão mais capazes de interpretar uma norma constitucional tão clara (vale salientar que o policial em questão estava em companhia de um advogado). Além disso, a mesma polícia sabe perfeitamente recorrer a essa norma constitucional na hora de invadir casebres paupérrimos.
É revoltante lembramos que a instituição policial costuma alargar absurdamente a noção do que seja flagrante delito quando se trata de fazer incursões em favelas, quebrando portas de barracos em qualquer hora do dia ou da noite independente de ordem judicial. Tudo isso, posteriormente, costuma ser validado pelo próprio Poder Judiciário.
Existem teses de que abusos policiais são causados por despreparo ou por falha ética dos “maus policiais”. Mas o que se busca, com esse discurso, é deslocar o problema da esfera pública para o âmbito da moral individual, inocentando a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário. A culpa seria apenas de um ou outro agente público e não das instituições. Na verdade, a ideologia hegemônica nessas instituições tem uma lógica própria. Trata-se da lógica da defesa do patrimônio em primeiro lugar. A propriedade privada tem preponderância sempre, ficando acima dos direitos à moradia e à integridade física.
Um barraco (ou outra construção sem título formal de propriedade) não pode, segundo o ideário burguês, ser considerado casa. Mas, no Capitalismo, um hotel luxuoso é – sem dúvida alguma – asilo inviolável.
(*W. B. é técnico de atividade judiciária do Tribunal de Justiça-RJ e membro do Movimento de Oposição Serventuária)