CAROLINA ROSSETTI
Uma ampulheta aprisiona dois mundos. O primeiro, opaco, de onde vazam segredos sujos, aos poucos se destrói - para então se recompor em um planeta novo, mais transparente, honesto. É esse o logo e a filosofia da ONG WikiLeaks, que se disseminou em jornais e blogs nessa semana ao divulgar 92 mil documentos das ações militares americanas e de forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão durante os anos de 2004 a 2009 da era Bush filho. "Eu adoro esmagar canalhas", disse o idealizador do site e hacker australiano Julian Assange, em entrevista coletiva em Londres, referindo-se aos responsáveis por supostos crimes de guerra revelados pelo calhamaço de relatórios publicado simultaneamente pela revista alemã Der Spiegel, pelo jornal britânico The Guardian e pelo americano The New York Times. Entre as denúncias estão descrições detalhadas de execuções de civis, a existência de um esquadrão encarregado de "capturar ou matar" sem julgamento 70 líderes do Taleban e evidências do envolvimento do serviço secreto do Paquistão, aliado americano na guerra, com o movimento fundamentalista afegão.
Em sua home page, o WikiLeaks se define como uma "avenida global" para a disseminação de documentos de interesse público. Ali, qualquer pessoa pode divulgar o que quiser sobre quem quiser. Sem amarrações e em total anonimato. Nem os organizadores do site têm acesso à identidade de suas fontes. Mesmo assim, o soldado Bradley Manning, de 22 anos, foi apontado como responsável pela extração dos registros do sistema interno de inteligência do Exército e pela postagem do conteúdo no site de Assange.
Manning já era o suspeito-mor de ter divulgado em abril, também no WikiLeaks, um vídeo mostrando, do interior de um helicóptero Apache americano, uma operação em Bagdá que resultou na morte de 11 civis iraquianos, dois jornalistas da Reuters - e nenhum insurgente. Em 2008, o WikiLeaks pipocou no noticiário internacional quando publicou uma cartilha do Exército americano que ensinava como seus soldados deveriam tratar os prisioneiros de Guantánamo e quando espalhou a conta de e-mail de Sarah Palin, ex-governadora do Alasca e candidata a vice-presidente na chapa do republicano John McCain. Mas em nenhum dos casos o site recebeu tanta atenção quanto agora.
Entusiasmado com a enorme repercussão do agora chamado Diário de Guerra do Afeganistão, Julian Assange chegou a compará-lo em importância aos Papéis do Pentágono. A divulgação desse material secreto, entregue em 1971 ao The New York Times pelo analista militar e ex-funcionário do Pentágono Daniel Ellsberg, teria contribuído para o fim da Guerra do Vietnã. O mesmo não se dará em relação aos documentos do WikiLeaks, avalia o repórter investigativo do NYT e vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo em 1988, Tim Weiner, para quem a comparação entre os dois vazamentos é completamente forçada. "Os Papéis do Pentágono eram 47 volumes de análise histórica cruciais para o cidadão americano entender que a guerra não poderia ser ganha com poderio militar. O material do WikiLeaks é uma tonelada de informação bruta." E completa: "Tentar obter informação útil do serviço de inteligência americano é como tentar beber um gole d’água em uma mangueira de incêndio".
Autor de um livro sobre a história da CIA, Legado de Cinzas, publicado no Brasil pela editora Record, Weiner é especialista em segredos de Estado. A ele foi concedido o prêmio mais importante do jornalismo americano por uma série de reportagens publicadas no The Philadelphia Inquirer nas quais desmascarou um orçamento secreto do Pentágono usado pelo governo para financiar a pesquisa e o desenvolvimento de novas armas. Weiner é um crítico ferrenho do serviço de inteligência americano, que, a seu ver, não cumpre o papel de assessorar a tomada de decisões estratégicas bem fundamentadas e conscientes. "O mais poderoso país do Ocidente falhou em criar um serviço secreto de primeira categoria", escreve Weiner em seu livro sobre os inúmeros erros da CIA. Para citar alguns, ele menciona a incompetência da agência em calcular as reais chances de vitória na invasão da Baía dos Porcos, em 1961, a incapacidade de prever o 11 de setembro e a invenção de que no Iraque havia armas de destruição em massa, argumento usado pelos americanos para invadir o país e depor Saddam Hussein. "Quando a inteligência falha, pessoas morrem." E a resistência da população local aumenta. É assim que se perde uma guerra contra um oponente infinitamente mais fraco, alerta Weiner.
É possível controlar a circulação de informações na era do WikiLeaks?
Primeiro, os documentos publicados pelo WikiLeaks traziam o selo de "secreto". O governo americano produz milhões de documentos "secretos" por ano. Acima do "secreto" existe o "top secret". E, acima do "top secret", incontáveis programas criptografados com senhas. Quando tudo é secreto, nada é secreto. Você não consegue manter segredos em uma sociedade aberta. A América é um navio com um furo no casco.
Recentemente o jornal The Washington Post publicou uma série de reportagens sobre o sistema de inteligência dos EUA mostrando que hoje 854 mil pessoas têm acesso a informações consideradas sigilosas. A rede de inteligência americana fugiu do controle?
Tentar obter informação útil do serviço de inteligência americano é como tentar beber um gole d’água em uma mangueira de incêndio. O sistema ejeta uma enorme massa de informação bruta, que sufoca a capacidade humana de análise e compreensão. As organizações de inteligência têm o propósito de servir como ferramentas para traçar estratégias inteligentes. Raramente elas cumprem esse papel. Quando a inteligência falha, pessoas morrem - soldados e civis. Presidentes e generais tomam decisões ignorantes. Exércitos atacam alvos errados. Quando as forças militares americanas e as tropas da Otan matam civis, o Taleban ganha pontos incalculáveis na batalha pela aliança da população local. Essa é uma das formas pelas quais uma nação pode perde a guerra contra uma guerrilha muito mais fraca, como aconteceu conosco no Vietnã.
Parece que os 92 mil documentos divulgados tem chocado mais pelo volume que pelo conteúdo. Quais podem ser as consequências políticas do episódio para o governo Obama?
Poucas informações divulgadas pelo WikiLeaks eram novidade para quem lê o trabalho de jornalistas e de organizações de direitos humanos que atuam no Afeganistão. É importante notar que os documentos cobrem o período de 2004 a 2009; portanto, são registros da guerra de Bush, não da de Obama. A informação muda muito pouco as estratégias e táticas de guerra que Obama adotou. Tanto que a Câmara de Representantes dos EUA aprovou na terça-feira, por 308 votos contra 114, a injeção de mais US$ 60 bilhões no conflito.
O vazamento poderá contribuir para o fim da guerra?
A guerra vai continuar. Os afegãos lutaram contra Alexandre, o Grande, os mongóis de Gengis Khan e Tamerlão, os britânicos, os russos e, agora, os americanos. Perderam muitas batalhas, mas nunca foram conquistados. Estive no Afeganistão sete vezes. Pelo que vi, acredito que os objetivos originais dessa guerra - matar os líderes da Al-Qaeda e neutralizar o Taleban - se perderam muitos anos atrás sob o governo Bush. Se a missão agora é a reconstrução do país a fim de transformá-lo em uma nação estável, depois de 30 anos de ocupação soviética e da ocupação americana, acredito que isso possa ser conseguido... em mais 30 anos.
O Diário de Guerra do WikiLeaks está sendo comparado aos Papéis do Pentágono.
A comparação é falsa. Os Papéis do Pentágono eram 7 mil páginas de documentos, em 47 volumes, de análise histórica preparada por experts sob o comando do secretário da Defesa de Kennedy e Johnson, Robert McNamara. Os papéis foram cruciais para os americanos entenderem que a guerra era política e não podia ser ganha com poderio militar. Considerado o mais grave vazamento da história do serviço de inteligência americano, os Papéis do Pentágono eram uma crônica das dificuldades dos americanos no Vietnã. O material do WikiLeaks são milhares de relatórios brutos da inteligência americana. Os Papéis do Pentágono foram muito mais importantes para virar a opinião pública dos americanos contra a guerra. Eles são a história supersecreta da Guerra do Vietnã de 1954 a 1967. Quando o presidente Nixon tentou impedir sua publicação, ele deu início a uma batalha contra vazamentos que, no final das contas, o levaram à autodestruição. Os papéis do WikiLeaks não trazem revelações importantes sobre a guerra. Eles adicionam detalhes de questões já bem conhecidas e compreendidas pelos que acompanham as notícias sobre o Afeganistão, que são a minoria do povo americano. No curto prazo, os documentos podem ajudar a focar a atenção do público dos EUA na guerra. Mas a terrível verdade é que milhões de americanos nada sabem sobre o Afeganistão e sua única preocupação é com os soldados americanos que estão morrendo nesse conflito.
O que significa contar a verdade sobre a guerra?
É o papel da inteligência - e dos jornalistas - penetrar o nevoeiro da guerra. Mas não existe uma coisa como total transparência em tempos bélicos. A névoa sempre ganha. Para citar McNamara: "A guerra é tão complexa que ultrapassava a habilidade da mente humana de compreender todas as suas variáveis. Nosso julgamento, nosso entendimento, não são adequados. E nós matamos pessoas sem necessidade." Essa é a verdade da guerra.
Assange, como Daniel Ellsberg, vem sendo acusado de ignorar os interesses nacionais. Foi essa uma ação irresponsável ou uma vitória jornalística?
Nenhuma das duas coisas. É uma parte natural e inevitável do embate em tempos de guerra entre o Pentágono e seus opositores em casa e no exterior.
Uma organização como o WikiLeaks - sem sede em nenhum país e, portanto, sem ter de obedecer a nenhuma lei - propicia a qualquer pessoa espaço para postar informações e opiniões, sob total anonimato. Será esse o futuro do jornalismo investigativo?
Se formos definir vazamentos de dados como revelações não autorizadas de informações confidenciais, então a única novidade que o WikiLeaks traz é o método de distribuição. O jornalismo investigativo não se baseia só em vazamento, mas na pesquisa detalhada e paciente.