Dia desses assisti ao filme "Vestígios do Dia" (Remains of the Day), produção EUA/Reino Unido, com 134 minutos, direção de James Ivory. A obra inteira é muito boa, com destaque para as belas interpretações de Anthony Hopkins e Emma Thompson. Mas teve um trechinho que me chamou especialmente a atenção. Ele me fez pensar um pouco no cotidiano de trabalho no Tribunal de Justiça aqui do Estado do Rio de Janeiro neste nosso século 21, apesar de o longa-metragem se ambientar na Inglaterra dos anos 1930.
Num dado momento do filme, durante uma reunião para visitantes ilustres, o mordomo chefe tem que se dividir entre as obrigações para com os patrões, e as preocupações com seu pai, também empregado, e que estava gravemente doente naquele dia.
Um convidado pede uma bacia de água morna com sal para pôr os pés, pois os seus sapatos estavam apertados. Outros fazem pedidos ainda menos importantes. Enquanto isso, o pai do mordomo está agonizando sem a presença do filho. Este é chamado depois - por seus colegas - ao leito do doente, que acabou de morrer. O mordomo fica ali bem pouco, recebe os pêsames de outros empregados e depois volta a servir no banquete dos patrões sem contar nada a eles ou a nenhum dos convidados. Ainda se lembra de pedir ao médico (o qual acabara de atestar o óbito de seu pai) que fosse urgentemente cuidar das dores nos pés do convidado que usara calçados apertados.
O que isso tem a ver com o trabalho no Tribunal de Justiça? Talvez nada, ou muito pouco. Mas o fato é que, na mesma hora, eu me lembrei dum caso que uma colega de trabalho me contou. Ela me disse que não pudera gozar da licença nojo (licença por falecimento de parente), quando sua mãe morrera. Levei um susto, pois esse tipo de licença não precisa de autorização. Perguntei por que ela não pudera usufruir desse direito. "Porque eu trabalhava em gabinete de juiz", foi a resposta. Eu argumentei que a licença é direito de todas as pessoas que trabalham no TJ, seja onde for. Então ela me respondeu que foi ameaçada de dispensa da função de secretária, caso gozasse a licença legal.
Essa colega cumpriu expediente normal naqueles tristes dias que se seguiram à morte da mãe.
Há quem possa argumentar que a comparação com o mordomo do filme é descabida. Que o trabalho no tribunal não se compara à futilidade duma festa numa mansão. Mas a cerimônia da mansão também se revestia de importância, pois nela havia pessoas influentes de países que estavam prestes a firmar acordos ou oposições em relação à Alemanha nazista. E no TJ também há, em meio à seriedade do que muitas vezes é decidido, alguns cerimoniais e ritos no mínimo desnecessários. O que são a obrigatoriedade do uso de gravatas por advogados em plena região tropical, e as togas completamente anacrônicas e os pronomes de tratamento pomposos? Será que são tão diferentes da ritualística dos talheres ou da forma de servir os convidados na Inglaterra nobre dos anos 1930, retratada no filme?
O fato é que, tanto numa quanto noutra realidade, o luto pela morte dum familiar deveria ter importância maior que a continuidade rígida da rotina laboral.
* W.B. é associado do CESTRAJU - Centro Socialista dos Trabalhadores do Judiciário.
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