(Por: W.B.*)
O
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro impõem que, para
progredir na carreira, suas servidoras e servidores se submetam a
pelo menos trinta horas de cursos por ano, ministrados pela Escola de
Administração Judiciária (ESAJ). Esta teria como missão, segundo
a Administração do TJ-RJ, “promover
ações de capacitação para formação e aperfeiçoamento de
servidores de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo PJERJ”.
A atual direção do
Sind-justiça – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do
Estado do Rio de Janeiro (eleita em outubro de 2011 e reeleita em
dezembro de 2014) lamentavelmente não se opõe à obrigatoriedade
dos cursos da ESAJ para progressão e promoção na carreira. Isso
ficou patente já a partir daquela que foi a última assembleia
setorial do estado acerca do reajuste salarial de 2012, ocorrida na
calçada da Rua Dom Manuel, nas imediações do Fórum Central, na
capital fluminense.
Na ocasião, respondendo a
uma fala do analista judiciário Vílson Siqueira, o então
coordenador geral do sindicato José Carlos Arruda defendeu os cursos
da ESAJ como parâmetro para promover serventuários, alegando que
outros órgãos também operavam promoções sob critério
semelhante. O Sr. José Carlos, que já fazia parte da anterior
direção do Sind-justiça, usufruía de licença sindical e, talvez
por isso, não sentisse o quanto esses cursos estressam e até
tumultuam a própria rotina laboral de cada pessoa que – de fato –
trabalha dentro do tribunal. Ao fim da rodada de assembleias
regionais da época, a direção do Sind-justiça conseguiu trocar a
data-base da categoria de maio para setembro (o que o nefasto
politiqueiro Sérgio Cabral, do PMDB-RJ, já havia tentado em 2007 e
2008). Assim, o sindicato cedeu à proposta da presidência do
Tribunal de Justiça, que – como compensação pela mudança do
marco de reajuste salarial anual – prometia dinamizar as
progressões funcionais. Estas, no entanto, continuaram condicionadas
aos famigerados cursinhos da ESAJ.
Independente de eventuais
divergências com os indivíduos que estejam na direção sindical,
cada pessoa que integra a classe trabalhadora estatutária no TJ
deveria se sindicalizar e pelejar por uma verdadeira democracia no
sindicato e no trabalho. Todas as servidoras e servidores do
judiciário estadual deveriam valorizar o importante organismo que é
o Sind-justiça: uma relevante ferramenta para a organização das
lutas da categoria serventuária. Presença em assembleias, adesão a
greves e protestos – buscando à união a partir da manifestação
da pluralidade de opiniões – é o que pode nos afastar das
alienações impostas pela Administração do Poder Judiciário.
Tentando escapar das
lavagens cerebrais promovidas pelo TJ-RJ, algumas pessoas que ocupam
cargos de técnico de atividade judiciária ou analista judiciário
até deixam de prestar os referidos cursos da ESAJ, mesmo sabendo
dos grandes prejuízos para a subida de padrão e classe (níveis na
carreira funcional). Afinal, o que a ESAJ promove para desagradar
tanto a categoria serventuária? Abstraindo da questão de obtenção
de promoções, nos cabe perguntar: a quem servem essas aulas?
Exemplificando: um curso dado na ESAJ
No segundo semestre de 2011, foi oferecido o curso Noções Básicas
da Norma ISO 9001:2008 com doze horas de duração, conferindo 24
pontos para ascenção na carreira. Pessoas lotadas em cartórios com
certificação de qualidade conferida pela ISO foram impelidas a se
inscreverem na turma para “se capacitarem”.
ISO
é uma organização não-governamental fundada em 1947,
em Genebra,
e hoje presente em cerca de 190 países. A sua função seria
promover a normatização de produtos e serviços, para que a
qualidade deles fosse permanentemente melhorada.
Por extenso, a denominação dessa organização mundial é
International Organization for Standardization, que geraria
siglas diversas nos idiomas dos diferentes países alcançados pelos
tentáculos do grupo: IOS em inglês, OIN em francês, OIP em
português etc. Para evitar essa pluralidade de siglas, os fundadores
decidiram adotar (uniformizadoramente em todo o mundo) o acróstico
ISO, que equivale a um afixo de origem grega presente em idiomas
modernos, como a própria língua portuguesa, nesta assumindo a
significação de "igual" – integrando, como prefixo, as
palavras: isóceles, isótopo, isométrico e outras. A ISO (como
indica o vocábulo original grego) prega a padronização, tentando
implementar sistemas nos quais os produtos sigam todos o mesmo
processo produtivo, para todas as peças.
As normas ditadas interferem nos processos internos das empresas,
moldando a conduta dos trabalhadores, que são hipocritamente
designados “colaboradores” – denominação que mascara o
conflito patrão-empregado, inerente ao sistema econômico
capitalista. Há contínuo monitoramento do ambiente de trabalho:
controle constante sobre a massa trabalhadora, estimulada a
manifestar contentamento e boa-vontade com relação ao labor diário,
não se eximindo, porém, de dar sugestões para o contínuo
incremento da produção. A expressão chave nos textos da ISO é:
“processo contínuo de melhoria do sistema de gestão da
qualidade”. Segundo a ideologia do grupo, é sempre possível fazer
cada vez mais, usando cada vez menos recursos. Em prol do lucro,
espremem-se ao máximo os recursos, inclusive os recursos humanos –
cada vez menos humanos, mais achatados pelo rolo compressor
produtivista.
No curso oferecido pela ESAJ no segundo semestre de 2011, foi
possível sentir a pressão da ISO logo pela indagação feita aos
alunos no primeiro dia de aula. O problema não foi tanto a pergunta
em si, mas a condição dada para que ela fosse respondida. O
professor questionou, a cada pessoa inscrita no curso, qual era o
motivo para ela estar ali. Mas antes alertou que não aceitaria como
resposta que alguém dissesse ter ido lá simplesmente por ordem do
chefe.
Os alunos se viram forçados, meio constrangidamente, a criar
respostas inverídicas para a pergunta feita, pois a maioria só
estava lá mesmo porque era obrigada. Cada resposta (falsa) era
recebida pelo professor com um sorriso de aprovação e alguns
elogios ao “interesse” e “entusiasmo” do estudante. Os menos
convincentes, que involuntariamente deixavam transparecer certo
enfado em relação ao curso, ouviam que – em breve –
assistiriam a um vídeo que os ajudaria a ter uma postura mais
“pró-ativa”.
Quem Mexeu no Meu Cérebro?
Durante os encontros, sempre que alguém esboçava algum grau de
crítica sobre os valores apregoados, o palestrante repetia as
explicações sobre as vantagens dos sistemas de gestão. Ocorre,
porém, que não se tratava – na maior parte das vezes – de
alguma dúvida do aluno, mas simplesmente duma discordância de
opinião em relação ao que estava sendo propagado ali. Porém
divergências da pessoa inscrita no curso eram sempre tratadas como
incompreessão do conteúdo da aula. Nas entrelinhas, rotulava-se o
aluno divergente como inapto a compreender ou então como alguém
inflexível, rígido, avesso a mudar seus paradigmas. As
“explicações” do instrutor se repetiam mais e mais e o
estudante se sentia impelido a “concordar” com ele, para não ser
visto pelos outros como um entrave ao andamento das aulas. A suposta
concordância do aluno era então elogiada pelo mestre e, assim, os
demais se sentiam estimulados a também aderirem àquelas ideias.
Silenciados os esboços de polêmica, era hora de aprofundar a visão
de mundo do curso através da utilização de recursos audiovisuais.
Exibiu-se então um desenho animado com o curioso título “Quem
Mexeu no Meu Queijo?”.
No curtametragem de animação, foram apresentados quatro
personagens: os ratos Sniff e Scurry e os duendes Hem e Haw, todos
habitantes dum mesmo labirinto. Apesar de suas ações instintivas,
os roedores, a exemplo dos desenhos de Walt Disney, figuram
antropomorficamente: são bípedes, usam tênis de corrida e têm o
mesmo tamanho dos hominídeos. Estes, apesar de chamados de duendes,
são nitidamente humanos na maneira de se vestir, andar, agir e
pensar. Ratos e homenzinhos tinham em comum a necessidade de queijo,
sendo este a única aspiração e razão da existência de cada
personagem. Assim, todos os dias, roedores e duendes saíam pelo
labirinto em busca do idolatrado queijo.
Os instintivos Sniff e Scurry saíam procurando dum corredor para
outro. Se não encontravam num, logo mudavam o caminho sem parar pra
pensar. Lembravam os locais pelos quais já haviam passado e logo
seguiam para outra parte. Sniff se destacava pelo faro aguçado, que
ajudava a achar a direção desejada; Scurry, por sua vez, era mais
ligeiro. Apesar de se perderem e até darem de cara nas paredes,
acabavam encontrando o caminho até o adorado queijo. Hem e Haw
faziam suas buscas de maneira menos instintiva, mais racional, porém
isso não lhes conferia vantagem alguma em relação aos ratos.
Após algumas buscas, finalmente os quatro encontraram, no interior
do labirinto, uma divina “montanha de queijo”, num local
denominado Posto C. Todos os personagens, então, passaram a,
diariamente, ir logo pela manhã à mina de queijo e ficar por lá
devorando seu tesouro até anoitecer. Entretanto os ratos mantiveram
a rotina de acordar cedo, calçar os tênis e correr até o Posto C,
portando pranchetas nas quais anotavam possíveis rotas futuras para
outras minas de queijo quando fosse necessário. Enquanto isso, os
humanos passaram a acordar tarde, vestir-se sem pressa, andar
preguiçosamente descalços, acreditando que jamais precisariam
procurar queijo noutro lugar.
A dupla de ratos – indubitavelmente mostrada no desenho como
exemplo a ser seguido – chegava ao Posto C bem cedinho e, antes de
se alimentar, cheirava o queijo e fazia uma vistoria na área para
ver se havia ocorrido alguma mudança em relação ao dia anterior.
Um dia, ao chegarem pela manhã, Sniff e Scurry descobriram que o
queijo havia sumido. Não se surpreenderam. Sem tecer nenhuma teoria
ou pensamento crítico acerca do fato, aceitaram a mudança da
situação no posto. Não criticaram a realidade a sua volta, só
resolveram simplesmente procurar queijo noutro lugar. Não
raciocinaram absolutamente nada, só agiram imediata e
instintivamente.
Os humanos Hem e Haw (mostrados como exemplo do que não deve ser
feito) se revoltaram com a ausência de queijo no Posto C e
puseram-se a reclamar. Hem passou a gritar: “Não há queijo? QUEM
MEXEU NO MEU QUEIJO?”.
Ardilosamente, na historinha criada para servir de parábola às
realidades do mundo do trabalho, ninguém mexeu no queijo. Este só
acabou porque, sendo consumido dia a dia, teria que chegar ao fim
nalgum momento. Isso torna sem sentido a queixa de Hem, pois não
haveria culpados pela situação ruim pela qual os dois humanos
estavam passando. Queixas, reivindicações, protestos seriam vazios
nesse contexto. O desenho dá a entender que, na vida real, não
devemos nos insurgir contra as mudanças que são ruins para nós,
pois essas mudanças não teriam sido tramadas por ninguém: seriam
só uma consequência natural dos tempos – tal como o fim do queijo
de Hem. Entretanto, no mundo real, as modificações não são fruto
natural do fluxo inexorável da História, elas são consequência de
decisões políticas e gestões econômicas exploratórias.
Claramente, o desenho animado tem o objetivo de nos convencer a
aceitar calados todas as mudanças impostas pelo patronato e pelo
Estado, amoldando-nos a elas.
Quem se recusa a se adaptar, a achar uma saída individual que ignore
as injustiças do mundo, é comparado – pela história – ao
ridículo personagem Hem. Este é mostrado como reclamão,
preguiçoso, inflexível e covarde. Vendo esse filme, como será que
se sentiram aqueles alunos da ESAJ que são entusiastas do
incomformismo, da luta por uma realidade diferente, socialmente
justa? Certamente sentiram-se comparados a Hem: pusilânime,
comodista, resmungão, imaturo, fadado a morrer por sua própria
teimosia.
Quem conhece bem o cinema brasileiro deve ter percebido uma profunda
semelhança entre a situação real acontecida no espaço da ESAJ com
uma cena (ficcional) ocorrida com o personagem Deraldo, no filme
nacional O Homem que Virou Suco, de 1979.
Deraldo era serventuário?
Em
1980, O
Homem que Virou Suco
levou o Troféu Candango (melhor ator) do Festival de Brasília. Foi
vencedor do Grande Prêmio do Festival de Moscou, um dos mais
importantes do mundo, em 1981. No mesmo ano ganhou três troféus
Kikito no Festival de Gramado: melhor roteiro, ator (José Dumont) e
ator coadjuvante (Denoy de Oliveira). Dumont foi premiado ainda, em
1983, no Festival de Huelva, na Espanha, por sua atuação neste
nosso marco do cinema.
A
obra cinematográfica mostra os problemas pelos quais passa o
retirante nordestino através de passagens às vezes líricas, outras
dramáticas; mas também há momentos cômicos bastante
interessantes. O protagonista (Deraldo, muito bem interpretado por J.
Dumont), imigrante do nordeste, se vê obrigado a passar pelos mais
diversos empregos. Enfrenta situações exploratórias e toda sorte
de opressões. Responde a elas às vezes através da zombaria, do
riso e, noutros momentos, pelo xingamento aberto, pela insubmissão
aos patrões manifestada através de sua orgulhosa postura de
cabra-macho nordestino, avesso aos bem comportados valores burgueses.
Assim, mesmo encarando fome e privações diversas, ao fim do dia
Deraldo recostava a cabeça em seu travesseiro surrado e dormia o
sono dos justos, orgulhoso de sua maneira de ser: forte e insubmisso
como um guerreiro do cangaço. Mas, certo dia num curso dado numa
empresa, seria submetido a ver um desenho animado para “se
capacitar” ao trabalho. É assim que, lá pelos 50 minutos de
projeção de O
Homem que Virou Suco,
nos deparamos com uma das mais representativas cenas desse genial
filme com roteiro e direção de João Batista de Andrade.
O personagem Deraldo –
contratado para trabalhar numa obra de metrô na capital paulista –
é chamado a uma sala junto com outros trabalhadores. Ali, ele se vê
diante dum homem bem penteado, de óculos, trajando terno e gravata.
O elegante sujeito fala da experiência que sua empresa tem em
capacitar pessoas ao trabalho. Diz que a preparação dos empregados
para a labuta se dará através da exibição dum “audiovisual”
durante três dias. Trata-se de um desenho animado que traça a
história do personagem Antônio Virgulino da Silva (desenhado como
cangaceiro) ao vir trabalhar em São Paulo.
A animação mostra Virgulino
se empregando numa obra, visando domar a “cobra gigante”, que é
o metrô paulista. O caricato personagem do desenho rasga os cartazes
que determinam “respeitar o chefe”, ameaça seus superiores
hierárquicos com uma peixeira, desobedece a ordens dadas. Acaba
perdendo o emprego e sendo ridicularizado pelos próprios colegas.
Após
assistir a esse desenho animado, Deraldo se sente humilhado.
Identifica-se com o risível personagem Antônio Virgulino da Silva
que, no dizer do narrador: “tinha fama de herói, mas era um
palhaço”. À noite, Deraldo mal consegue dormir: é assolado por
pesadelos, nos quais se vê caracterizado como cangaceiro, pelas ruas
de São Paulo, ridicularizado pelos transeuntes que o apontam e
estigmatizam.
Em
O
Homem que Virou Suco,
esse é apenas um dos sofrimentos passados pelo protagonista, uma
poeta popular que se vê forçado a trabahar para o patronato, quando
(na verdade) desejava mesmo se dedicar exclusivamente ao cordel. Da
mesma forma que no longametragem colorido da
década de 70, ocorre em nosso século 21
no Tribunal de Justiça-RJ. Neste, em virtude do excesso de
atribuições, muitos servidores públicos se veem obrigados a
sacrificar seus gostos, deixando de exercer dotes artísticos.
Ao longo dos 95 min do
memorável filme, vemos que problemas financeiros, pressão dos
vizinhos, exigência de documentos, tudo atrapalha o personagem
Deraldo em sua trajetória em Sampa. Para o servidor do poder
judiciário fluminense, na nossa sociedade atual, os reveses ainda
não são tão dramáticos quanto os dos subempregados da capital
paulista. Porém se pode dizer que, apesar da diferença de
intensidade, estamos diante de opressões análogas.
Entre
servidores do TJ-RJ já foram ouvidas as mais estarrecedoras
histórias: pessoas que trabalham gratuitamente durante as férias
para não perder determinados comissionamentos; outras que, visando
se manter em função de secretário de juiz, aceitam não gozar
licença por faleciemento de pessoa da família (a chamada licença
nojo); servidores obrigados – por muito tempo – a passar
diariamente seus medicamentos e refeições através de aparelhos de
raio X dos fóruns em que trabalham, podendo sofrer consequências
péssimas para sua saúde...
Como
se não bastasse tudo isso, a categoria serventuária ainda se vê
submetida a lavagens cerebrais como as práticadas por disciplinas
ministradas na ESAJ. No curso em questão, Noções Básicas da Norma
ISO 9001:2008, utilizou-se amplamente material inspirado no livro de
autoajuda estadunidense “Quem Mexeu no Meu Queijo?” (Who
Moved My Cheese?),
publicado em 1998 pelo psicólogo Spencer Johnson. Um campeão de
vendas, mas cujo conteúdo ideológico só favorece mesmo a uma
minoria bilionária.
A
alienação é Best-seller
O autor Spencer Johnson é um
fenômeno de vendas. Tem livros traduzidos para mais de vinte
idiomas, somando mais de dez milhões de exemplares vendidos pelo
mundo a fora. Nascido no estado de Dakota do Sul (região
centro-oeste dos EUA), Johnson esposa valores típicos do Capitalismo
estadunidense.
Seu
conhecimento em Psicologia é habilmente usado em Quem
Mexeu no Meu Queijo?,
induzindo os leitores a se sentirem obrigados a concordar com a tese
central do livro. Este, não por acaso, tem um capítulo introdutório
que busca desqualificar previamente qualquer crítica acerca da moral
da “parábola” que será contada. No tal preâmbulo, intitulado
“Uma Reunião: Chicago”, vários antigos colegas de escola
conversam sobre suas trajetórias de vida profissional, concordando
sobre a necessidade de aceitarem sempre as mudanças que vêm a
ocorrer. Então um dos amigos, chamado Michael, fala duma historinha
que seria muito boa e que ajudara vários colegas a lidarem melhor
com as transformações no mundo do trabalho. Segundo Michael, quase
todos em sua empresa haviam gostado da históra e teriam se
beneficiado dela, porém ele acrescenta:
“Quando
um dos nossos executivos seniores, que estava tendo dificuldade de
adaptação, disse que a história era perda de tempo, outras pessoas
zombaram dele dizendo que sabiam qual personagem ele era na história
– aquele que não aprendeu nada e não mudou.”
Assim, antes de a fábula
começar a ser contada (no capítulo seguinte), já somos coagidos a
elogiá-la, pois – se não o fizermos – seremos fatalmente
comparados ao ridículo personagem Hem, “que não aprendeu nada e
não mudou”. É interessante notar que o autor Spencer Johnson não
insere em seu livro nenhuma crítica aos colegas que tinham zombado
do “executivo senior” que não gostara da história.
Longe
de apresentar alguma rejeição a práticas opressivas no ambiente de
trabalho, o livro dá estímulo ao bullying
ou ao assédio moral horizontal contra aqueles que seriam avessos a
determinadas mudanças – logo comparados ao personagem Hem. Este,
ao contrário do duende Haw, não se convence a continuar procurando
queijo pelo labirinto. Hem só fica se lamentando, chorando, teimoso,
sentado no Posto C, sem fazer nada em prol de si mesmo. Até recusa
pedacinhos de queijo novo trazidos por Haw. Hem, comodistamente, só
espera que o velho queijo resurja no mesmo lugar, como mágica.
Condena-se a morrer de fome por seu próprio comodismo.
Isso não se parece com o
discurso da extrema direita, que costuma qualificar os famintos como
pessoas que não têm iniciativa e “empreendedorismo”? Não é
dito, por fascistas, que essas pessoas passam fome por culpa delas
próprias?
Quem
Mexeu no Meu Queijo?
propagandeia um darwinismo social, segundo o qual devemos nos adaptar
individualmente ao mundo a nossa volta e deixar que os inaptos
pereçam. O personagem Hem sucumbiu por sua própria covardia, a
moral da história é que o mundo é dos fortes: um labirinto em que
só os mais aptos sobrevivem, e onde é natural que pereçam os
medíocres. Aliás, vale relembrar que uma apostila doutro curso da
ESAJ já havia enaltecido a montadora japonesa Nissan por haver
desenvolvido um plano de avaliação de desempenho que demitiu
milhares de pessoas. Na apostila em questão, lá pelo ano 2010,
escreveu-se – elogiosamente – que a avaliação de desempenho
serviu ao objetivo de “expulsão da mediocridade”.
A
ESAJ tem enaltecido continuamente firmas transnacionais opressoras,
tidas como exemplo a ser seguido. E tem adotado material teórico que
favorece visões desses grupos. Quem
Mexeu no Meu Queijo?
traz, em seu final uma lista de empresas em que foi adotado. Entre
essas são citadas: Nestlé, Kodak, IBM e outras.
Nestlé
é uma empresa suíça que obteve lucros monumentais em contratos com
a Alemanha nazista. E, durante a Segunda Guerra Mundial, manteve
milhares de escravos em suas linhas de produção. Segundo um
relatório elaborado pelo historiador suíço Jean François Bergier,
a Nestlé não só usou mão de obra forçada em sua subsidiária
alemã como a matriz estava a par de tudo. Informações acerca disso
podem ser vistas no artigo “Os aliados ocultos de Hitler”
publicado na revista Superinteressante, escrito por Cláudia
de Castro Lima e acessível no endereço –
http//super.abril.com.br/historia/os-aliados-ocultos-de-hitler/.
|
Kodak, IBM e outras empresas capitalistas apoiaram o monstro nazista |
O
referido artigo também cita a IBM, empresa que também utiliza hoje
o livro de Spencer Johnson. A
IBM construiu máquinas personalizadas para os nazistas. Com elas,
podia-se controlar tudo, do fornecimento de petróleo aos horários
dos trens para os campos de morte. Podia-se até monitorar contas
bancárias de judeus vítimas do Holocausto.
Sobre
a Kodak, que igualmente adota Quem
Mexeu no Meu Queijo?,
também há informações na revista Superinteressante. Durante
a Segunda Guerra Mundial, uma filial alemã da Kodak usou
trabalhadores escravos vindos dos campos de concentração. Várias
outros ramos europeus da empresa fizeram alianças com o governo
nazista. Wilhelm Keppler, um dos principais assessores econômicos de
Hitler, tinha ligações profundas na Kodak. Quando o Nazismo
começou, Keppler aconselhou à Kodak e várias outras empresas
norte-americanas a demitir todos os empregado judeus em troca de
benefícios.
Benefícios a todo custo. É
isso que o ideário empresarial capitalista nos alimenta a buscar.
Segundo tal sistema de pensamento, os mais aptos sobrevivem neste
labirinto que é a sociedade. A meta é que não passemos de ratinhos
em busca de queijo, andando pra lá e pra cá sem raciocínio algum.
Se alguém morrer, isso seria culpa da própria pessoa que não soube
se adaptar: não teve iniciativa ou coragem.
Notemos
como se chama o duende que pereceu ao fim da história: Hem. O nome
traz grande semelhança com o vocábulo inglês “hen”, que
significa galinha. Hen é um termo extremamente pejorativo que assume
o significado de covarde, semelhante a expressões portuguesas
modernas “bunda-mole” ou “cocoroca”.
É isso que devemos aprender
em cursos de capacitação? Enaltecer os bem sucedidos e
desqualificar os demais?
Tenhamos cérebros humanos.
Ousemos viver fora dos labirintos nos quais os poderosos insistem em
nos encarcerar. A vida é muito mais do que zanzar por corredores
vazios para deleite duma elite que busca nos seduzir com suas iscas
ilusórias. Não sejamos animalizados e presos nas labirínticas
relações competitivas que nos impedem de exercer a solidariedade.
Esta – a solidariedade – é que dá sentido e confere valor à
convivência humana. Resumir a vida a alguma conquista individual é
reduzir-nos a meros ratinhos de laboratório, correndo numa rodinha
giratória, atrás dum queijo que jamais se alcança.