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terça-feira, 17 de março de 2020

Rejeição aos Poderes: Dilemas Individuais e Veredas Coletivas



(Por: W.B.*)



Vivemos numa sociedade autoritária. Aliás, mal se pode chamar de sociedade esse imenso campo de concentração dividido em castas sobrepostas. Afinal, qual é a “sociabilidade” que pode existir entre senhores e escravos, clérigos e fanatizados, proprietários e despossuídos, governantes e governados?

A ditadura mais explícita é aquela em que o Poder Executivo se agiganta e oprime abertamente as pessoas, mas esta está longe de ser a única forma de despotismo. Não desejemos reis de forma alguma, mas também não vamos fechar os olhos para o caráter monárquico que se esconde sob as repúblicas modernas. Todo governo, qualquer que seja sua forma (personalista, constitucional, fascista, republicano, nazi, imperial ou populista) é – por sua própria natureza – opressor. E o fato é: ele sempre busca se perpetuar, apesar das fantasias de quem acredita no caráter positivo de certas ditaduras que se proclamam como transitórias.

Sabe-se que, como contraposição às ditaduras, juristas agitam até hoje a embolorada bandeira da tripartição dos poderes, fechando olhos (e narizes) para aquilo que a macula há séculos. O pensamento desses idealistas do Direito seria que o Poder Executivo fosse controlado pelo Legislativo, enquanto o Judiciário ficaria de olho nos outros dois. Emerge a besta estatal perfeita, autorregulada, monstro de três cabeças: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. E o que dizer do Poder Econômico? Ele é a alma do monstro, a qual comanda suas três cabeças (mas é claro que isso não é dito na teoria jurídica). A face executiva ameaça os pobres com seus braços armados; a legislativa garante a propriedade dos ricos; a judiciária condena os desobedientes.

Essa fera de tríplice mordida vem nos devorando continuamente através dos séculos, e o pior é que muitas vezes isso se dá com a nossa concordância. Nas faculdades de Direito do Brasil, muitas das chamadas disciplinas propedêuticas pregam que o Estado nasceu da necessidade de existir um poder maior, para proteger os fracos da opressão dos fortes. Diz-se ainda que um pretenso contrato social teria instituído o Estado. Cada pessoa teria aberto mão duma parcela de sua liberdade individual em prol de segurança (esta mais diretamente garantida pela polícia). A magistratura seria o elemento neutro que mediaria os conflitos. Para afirmar tudo isso, recorre-se a Montesquieu, Rousseau, Hobbes e por aí vai. Por mais díspares que sejam as teorias, usa-se de tudo para justificar o Estado.

Por que a maioria de nós engole tudo isso como verdade? Onde está arquivado o tal “contrato social” que nossos ancestrais teriam assinado? Como algum poder pode “proteger os fracos da ação dos fortes”, se ele próprio também é um forte? Se a magistratura é composta por integrantes da sociedade de classes, como ela pode ser socialmente neutra?

Somos levados a acreditar em todas essas falácias do Direito burguês, porque não suportamos viver sem essas ilusões. Afastamos de nossa mente a angustiosa visão de que somos continuamente explorados e oprimidos por um sistema injustificável. Recalcamos o que poderia nos perturbar e assim adotamos concepções que tornam a vida “suportável”. Além disso, somos recompensados psicologicamente pelo pensamento de que estamos vivendo de acordo com nossas ideias, sem sermos pegos em contradição de comportamento.

No contexto brasileiro deste início de século 21, o serviço público ainda tem se mostrado um campo de trabalho razoavelmente seguro, por conta da estabilidade no cargo e do processo seletivo mais democrático, se comparado ao da iniciativa privada. Assim, muitas pessoas procuram vender sua força de trabalho para o Estado. E, aí, como odiar esse Estado que lhe dá o pão? Como viver sem sentir a picada angustiante duma existência hipócrita, que se sustenta do dinheiro de seu inimigo? Há quem escape dessa angústia adotando concepções de mundo justificadoras da sociedade tal qual ela é. Só que o preço a se pagar é muito alto: nunca transformar o mundo num lugar melhor.

Toda pessoa que sonha com uma realidade diferente daquela que está à sua volta vive – em maior ou menor grau – numa contradição. Quem odeia o governo, mesmo assim lhe paga impostos. Também o anarquista precisa registrar o filho. O anticapitalista muitas vezes acaba trabalhando no comércio. E os exemplos vão ao infinito…

A vida é contradição, conflito, movimento, dialética. O importante não é negarmos esse aspecto, mas vivermos o mais libertariamente possível desde já, mesmo navegando em meio a ondas autoritárias.

Lima Barreto, escritor anarquista carioca
O escritor libertário Lima Barreto (1881-1922), por exemplo, era funcionário civil do Exército, apesar de profundamente antimilitarista. Embora republicano fervoroso, o literato Euclides da Cunha (1866-1899) era militar sob um regime monárquico. Como eles viveram essas contradições? Lima criticou corajosamente o patriotismo (essa “religião do Estado”, no dizer dos anarquistas), além de sempre ridicularizar o governo e a burguesia em suas obras satíricas. Euclides da Cunha protagonizou o conhecido “episódio da baioneta”, no qual (em 1888) saiu da fila de cadetes e, após tentar quebrar sua baioneta, atirou-a aos pés do ministro da guerra do governo monárquico.
Euclides da Cunha, engenheiro e literato republicano

Como serventuário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o que proponho à minha categoria (como à classe trabalhadora em geral) é que não se iluda acreditando nas falácias do Poder Judiciário, que podem até parecer reconfortantes num primeiro momento, mas no fundo são paralisantes e escravizadoras. Enxerguemos os problemas, lutemos contra eles, assumamos as contradições de viver num mundo que não é aquele que queríamos. Não nos fechemos para o movimento da vida.

E essa rebeldia salutar, para não ser quimérica, ou irresponsável, deve se forjar coletivamente, pela união com outras irmãs e irmãos de classe. Vivamos desde já a revolução, que é – necessariamente – viva, dialética, prática e coletiva.

* W.B. é técnico de atividade judiciária e associado do CESTRAJU.

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