(Por: W.B.*)
Vivemos numa sociedade
autoritária. Aliás, mal se pode chamar de sociedade esse imenso
campo de concentração dividido em castas sobrepostas. Afinal, qual
é a “sociabilidade” que pode existir entre senhores e escravos,
clérigos e fanatizados, proprietários e despossuídos, governantes
e governados?
A
ditadura mais explícita é aquela em que o Poder Executivo se
agiganta e oprime abertamente as pessoas, mas esta está longe de ser
a única forma de despotismo. Não desejemos reis de forma alguma,
mas também não vamos fechar os olhos para o caráter monárquico
que se esconde sob as repúblicas modernas. Todo governo, qualquer
que seja sua forma (personalista, constitucional, fascista,
republicano, nazi, imperial ou populista) é – por sua própria
natureza – opressor. E o fato é: ele sempre busca se perpetuar,
apesar das fantasias de quem acredita no caráter positivo de certas
ditaduras que se proclamam como transitórias.
Sabe-se
que, como contraposição às ditaduras, juristas agitam até hoje a
embolorada bandeira da tripartição dos poderes, fechando olhos (e
narizes) para aquilo que a macula há séculos. O pensamento desses
idealistas do Direito seria que o Poder Executivo fosse controlado
pelo Legislativo, enquanto o Judiciário ficaria de olho nos outros
dois. Emerge a besta estatal perfeita, autorregulada, monstro de três
cabeças: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. E o que dizer
do Poder Econômico? Ele é a alma do monstro, a qual comanda suas
três cabeças (mas é claro que isso não é dito na teoria
jurídica). A face executiva ameaça os pobres com seus braços
armados; a legislativa garante a propriedade dos ricos; a judiciária
condena os desobedientes.
Essa
fera de tríplice mordida vem nos devorando continuamente através
dos séculos, e o pior é que muitas vezes isso se dá com a nossa
concordância. Nas faculdades de Direito do Brasil, muitas das
chamadas disciplinas propedêuticas pregam que o Estado nasceu da
necessidade de existir um poder maior, para proteger os fracos da
opressão dos fortes. Diz-se ainda que um pretenso contrato social
teria instituído o Estado. Cada pessoa teria aberto mão duma
parcela de sua liberdade individual em prol de segurança (esta mais
diretamente garantida pela polícia). A magistratura seria o elemento
neutro que mediaria os conflitos. Para afirmar tudo isso, recorre-se
a Montesquieu, Rousseau, Hobbes e por aí vai. Por mais díspares que
sejam as teorias, usa-se de tudo para justificar o Estado.
Por que a maioria de nós
engole tudo isso como verdade? Onde está arquivado o tal “contrato
social” que nossos ancestrais teriam assinado? Como algum poder
pode “proteger os fracos da ação dos fortes”, se ele próprio
também é um forte? Se a magistratura é composta por integrantes da
sociedade de classes, como ela pode ser socialmente neutra?
Somos levados a acreditar em
todas essas falácias do Direito burguês, porque não suportamos
viver sem essas ilusões. Afastamos de nossa mente a angustiosa visão
de que somos continuamente explorados e oprimidos por um sistema
injustificável. Recalcamos o que poderia nos perturbar e assim
adotamos concepções que tornam a vida “suportável”. Além
disso, somos recompensados psicologicamente pelo pensamento de que
estamos vivendo de acordo com nossas ideias, sem sermos pegos em
contradição de comportamento.
No contexto brasileiro deste
início de século 21, o serviço público ainda tem se mostrado um
campo de trabalho razoavelmente seguro, por conta da estabilidade no
cargo e do processo seletivo mais democrático, se comparado ao da
iniciativa privada. Assim, muitas pessoas procuram vender sua força
de trabalho para o Estado. E, aí, como odiar esse Estado que lhe dá
o pão? Como viver sem sentir a picada angustiante duma existência
hipócrita, que se sustenta do dinheiro de seu inimigo? Há quem
escape dessa angústia adotando concepções de mundo justificadoras
da sociedade tal qual ela é. Só que o preço a se pagar é muito
alto: nunca transformar o mundo num lugar melhor.
Toda pessoa que sonha com uma
realidade diferente daquela que está à sua volta vive – em maior
ou menor grau – numa contradição. Quem odeia o governo, mesmo
assim lhe paga impostos. Também o anarquista precisa registrar o
filho. O anticapitalista muitas vezes acaba trabalhando no comércio.
E os exemplos vão ao infinito…
A vida é contradição,
conflito, movimento, dialética. O importante não é negarmos esse
aspecto, mas vivermos o mais libertariamente possível desde já,
mesmo navegando em meio a ondas autoritárias.
Lima Barreto, escritor anarquista carioca |
O
escritor libertário Lima Barreto (1881-1922), por exemplo, era
funcionário civil do Exército, apesar de profundamente
antimilitarista. Embora republicano fervoroso, o literato Euclides da
Cunha (1866-1899) era militar sob um regime monárquico. Como eles
viveram essas contradições? Lima criticou corajosamente o
patriotismo (essa “religião do Estado”, no dizer dos
anarquistas), além de sempre ridicularizar o governo e a burguesia
em suas obras satíricas. Euclides da Cunha protagonizou o conhecido
“episódio da baioneta”, no qual (em 1888) saiu da fila de
cadetes e, após tentar quebrar sua baioneta, atirou-a aos pés do
ministro da guerra do governo monárquico.
Euclides da Cunha, engenheiro e literato republicano |
Como serventuário do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o que proponho à minha
categoria (como à classe trabalhadora em geral) é que não se iluda
acreditando nas falácias do Poder Judiciário, que podem até
parecer reconfortantes num primeiro momento, mas no fundo são
paralisantes e escravizadoras. Enxerguemos os problemas, lutemos
contra eles, assumamos as contradições de viver num mundo que não
é aquele que queríamos. Não nos fechemos para o movimento da vida.
E essa rebeldia salutar, para
não ser quimérica, ou irresponsável, deve se forjar coletivamente,
pela união com outras irmãs e irmãos de classe. Vivamos desde já
a revolução, que é – necessariamente – viva, dialética,
prática e coletiva.
* W.B. é técnico de atividade judiciária e associado do CESTRAJU.
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