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segunda-feira, 16 de março de 2020

Franz Kafka e a Lei: Estado de Direito X Sociedade Libertária

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(Por: W.B.*)
“Tacitamente ameaçados, estamos imobilizados dentro de espaços sociais condenados, locais anacrônicos que se autodestroem, mas onde temos o estranho e apaixonado desejo de permanecer, enquanto o futuro se organiza, debaixo de nossos olhos, em função de nossa ausência já programada de maneira mais ou menos consciente.”
(Viviane Forrester)
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“Não há pior servidão que a esperança de ser feliz.”(Carlos Fuentes)

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O conto Diante da Lei, de Franz Kafka, narra a história de um homem que deseja passar por uma porta e “entrar na lei”. Mas, diante da porta, há um guarda que não o deixa passar. Transcorrem dias, meses, anos, na esperança de um dia lhe ser permitido o acesso. Já no final da vida, morrendo de cansaço, o homem pergunta ao porteiro por que, se todos aspiram ao Direito, ninguém mais tentou entrar na lei em tantos anos. O guarda responde: “Esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.
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Diante da Lei integra o livro Um Médico Rural e constitui uma espécie de protótipo do romance O Processo, onde Joseph K. é processado por um crime que não sabe qual é, e onde a mesma história do conto é narrada por um sacerdote ao acusado. Fica claro que, baseando-se na ideia desse conto, Kafka foi desenvolvendo uma narrativa longa, esta viria a se transformar em seu romance póstumo, o qual, junto com a novela A Metamorfose, é considerado sua obra-prima. Sabe-se que uma grande influência para a feitura de O Processo foi o romance Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski. Como na obra de Kafka, sempre surgem processos judiciais nos escritos de Dostoiévski: ora processos penais, ora civis, o que – na Rússia da época – não fazia tanta diferença já que existia a prisão por dívidas. Até hoje, doutrinadores de Direito aconselham aos estudantes a leitura de Dostoiévski, pois este demonstra muito claramente que fatos que nos parecem obviamente verdade dentro de um processo podem ser completamente falsos, e não se pode prejulgar ninguém, pois assim se faz a pior das injustiças, pior até que os crimes comuns (o que se vê de forma mais clara em Os Irmãos Karamázov).
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Kafka, numa carta à noiva Felice Bauer, escreveu que quatro homens são seus “parentes consanguíneos”: Grillparzer, Kleist, Flaubert e Dostoiévski. Este, por sua vez, havia declarado: “todos nós descendemos de O Capote de Gógol”. O conto O Capote narra a história de um homem que trabalha a vida inteira para comprar um capote e, quando consegue, é assaltado.
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Interessante notar a semelhança do conto O Nariz de Gógol – onde um homem acorda sem nariz – e A Metamorfose (de Kafka) – onde Gregor Samsa acorda transformado em barata. Em Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski, a degradação em que o personagem se vê submerso também nos lembra um pouco A Metamorfose (“Declaro-vos solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui considerado digno” – Notas do Subterrâneo). Dostoiévski também nos faz lembrar A Metamorfose num trecho do romance Os Demônios, onde uma personagem narra a seguinte fábula em versos: “Andava por este Mundo/ Uma barata. Mas veio/ Um dia cair no fundo/ Dum copo de moscas cheio.../ Sentiu-se ali muito bem./ Deixou-se ficar. As moscas/ Começam a protestar/ ‘Já não cabe mais ninguém!’/ Erguem aos céus o seu brado,/ E enquanto estão a gritar/ Aproxima-se o criado...”. A personagem então diz sobre a fábula: “Ainda não acabei (...), explicarei o resto em prosa. O criado pega no copo e, apesar da celeuma, atira tudo ao lixo, moscas e baratas. Mas repare (...) a barata não protesta. No que respeita ao criado ele personifica a natureza”. Não há saída, assim como no conto Uma Fabulazinha, de Kafka, onde um gato indica o caminho por onde o rato poderia escapar e o devora logo em seguida: é o humor negro e a desesperança que perpassam toda a obra kafkiana.
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Os escritos de Gógol também tinham muito humor, assim como os de Kafka, que lia para os amigos trechos de O Processo quase chorando de tanto rir. Tanto Gógol quanto Dostoiévski eram eslavófilos, o que na Rússia da época representava um pensamento retrógrado, mas – pelo menos no caso dos dois – bem intencionado. No romance Os Demônios, Dostoiévski critica veladamente o escritor ocidentalista Turguêniev (amigo do socialista libertário Bakunin) criando um personagem escritor, pedante, chamado Karmazinov, que teria escrito um artigo medíocre, “cheio de pretensões poéticas misturadas com considerações psicológicas” onde é descrito um naufrágio na costa da Inglaterra exatamente como no conto Um incêndio no Mar de Turguêniev. Provavelmente a rivalidade entre os dois escritores se dava mais por razões políticas do que propriamente literárias. Realmente o Ocidentalismo pecava por valorizar exageradamente os avanços técnicos das sociedades européias; porém a crítica de Dostoiévski parece abarcar todas as ideologias antimonarquistas, demonstrando um certo reacionarismo no grande escritor russo.
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Apesar de a esquerda ser um tanto caricaturada na obra de Dostoiévski, seus romances demonstram aversão à tortura, à pena de morte e à exploração. Mas o fato é que essa moral propalada por Dostoiévski não é exatamente humanista, mais sim religiosa. A grande questão que ele nos apresenta através do personagem Ivan Karamázov é: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Se tudo é permitido, inexiste uma moral: nada é errado. Satisfazer as paixões seria o único objetivo do indivíduo, que não hesitaria em causar mal ao próximo para alcançar a única finalidade da vida: o prazer. Deus, portanto, seria indispensável para a sobrevivência da raça humana, a qual sem ele estaria fadada à autodestruição. A fé é imprescindível.
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Em Kafka a fé é a grande vilã. O castelo (no romance homônimo) só é poderoso porque todos lhe atribuem poderes, creem na força dos funcionários do castelo, que para o agrimensor K., estrangeiro, nada parecem ter de especial. O Deus/Pai/Estado aparece como elemento instituidor de um sistema incompreensível ao povo – incompreensível porque não estabelecido pelas pessoas que a ele se submetem. Um regime de normas é criado, mas o criador não se submete a elas – é um tirano.
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A descrença é que salva em Kafka. Em O Processo, quando Joseph K. afronta o tribunal que o acusa e nega a validade dos procedimentos legais, até o submisso acusado Block se põe a reclamar: há um esboço de ruptura no sistema. K. não acreditava no advogado e o destituiu, gerando escândalo. Block cria no advogado, e assim se tornou escravo dele, submetendo-se a seus caprichos. No universo kafkiano, não crer é fundamental: só assim se é livre.
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Quando se é livre, tudo é permitido? Quando se é livre, vive-se numa coletividade livre em que as normas advêm das pessoas que a elas se submeterão, logo serão normas que permitam o bem. Apenas existindo um Deus/Pai/Estado, o mal seria permitido, pois as normas adviriam de uma autoridade e não dos indivíduos que se submeteriam a elas, e que obviamente não prescreveriam o mal para si. Kafka não tece explicitamente considerações a esse respeito: não trata de idealização de sociedade futura. Ele não foi um utopista, suas preocupações não eram voltadas para as ciências sociais ou políticas. “Tudo que não é literatura me aborrece”, dizia. Apesar disso, em 1918, Kafka elaborou o programa para uma “Comuna de trabalhadores sem propriedade privada”, que pode ser lido como um projeto de “kibutzim” israelita baseado nas ideias de Piotr Kropotkin (anarquista comunista), Liev Tolstoi (pacifista cristão anti-estatista) e Aaron David Gordon (um dos fundadores do movimento dos “kibutzim”).
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Interessou-se por ideias radicais já na adolescência, tendo Espinosa como primeiro mentor espiritual, o qual – herege delicado, mas inflexível – havia sido expulso da comunidade judaica de Amsterdã dois séculos antes. Em 1899, aos 16 anos, Kafka entusiasmou-se com a publicação de Die Welträtsel (Os Mistérios do Mundo) do biólogo e filósofo alemão Erneste Heinrich Haeckel, cujas ideias baseadas em Darwin rejeitavam até mesmo a divindade monista da Espinosa. Kafka voltou-se para um ateísmo mais declarado. Veio a ler Niezstche. Interessou-se mais tarde pelas ideias de Liev Tolstói e Alexandre Herzen, bem como pelo Anarquismo de Piotr Kropotkin. Alguns biógrafos chegaram a afirmar que Kafka teve participação ativa no órgão anarquista checo Club Mladych (Clube dos Jovens) por volta de 1910. Porém na biografia O Pesadelo da Razão (Ed. Imago, RJ, 1986), Ernest Pawel afirma que a participação do escritor se restringiu a umas poucas reuniões ou demonstrações públicas na qualidade de observador interessado.
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Não foi exatamente um “defensor do proletariado”, mas um escritor pleno que trabalhou para a radical libertação do ser humano. Em Kafka, a humanidade se contrapõe ao Estado, cuja burocracia estende seus tentáculos a todos os aspectos da vida humana. Nota-se que a linguagem forense é usada mesmo em relações que não seriam jurídicas. Há, por exemplo, um conto onde só aparecem pai e filho, mas cujo título é O Veredito, numa referência à condenação imposta pelo pai ao filho.
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A obra de Kafka tem claramente uma temática ligada ao Direito, como vemos nos escritos O Processo, O Novo Advogado, entre outros. Falar de Direito foi a maneira da Kafka abordar seu grande tema: o poder. O Veredito representa o poder do pai; A Metamorfose, o poder da família e da sociedade; O Processo, o do Estado. Na época, o pensamento jurídico dominante dizia que estado de direito e estado democrático eram sinônimos. Se algo não fosse bem dentro de um ordenamento jurídico, interpretava-se que este sistema não havia sido plenamente jurídico: certamente o Direito havia sido ferido em algum ponto. Legalidade era Justiça.
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Após a morte do escritor checo, houve a ascensão do Nazismo: as três irmãs de Kafka – que era judeu – morreram em campos de concentração, assim como Milena, ex-amante do escritor, que acolhia perseguidos em casa e, apesar de não ser judia, usava uma estrela de Davi amarela (uso impostos pelos nazistas a todos os semitas) como afronta aos hitleristas e solidariedade ao povo judaico.
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Depois do Nazismo, os doutrinadores de Direito ficaram desconfortáveis com a noção de que legal é igual a justo. Como negar a juridicidade do Nazismo, já que ele tinha normas rígidas e coerentes, exercidas sem rupturas com a legislação? E negar a injustiça do regime seria impossível. Foi aí que se separaram um pouco as ideias de estado de direito e sociedade democrática. Já há, entre os juristas, quem fale de sociedade de direito não democrática (fascista, por exemplo) e até de sociedade democrática que não seja de direito (indígena).
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Mas Kafka, antes de tudo isso, foi mais além, colocou a juridicidade como elemento necessariamente contrário à liberdade.
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“Juridicidade” não passaria de uma bonita palavra atrás da qual se esconde a opressão burocrática. E a luta pela cidadania seria uma maneira de afastar as pessoas da verdadeira questão a ser tratada: a questão da liberdade. Cidadania aparece então como o contrário de humanidade: o cidadão-eleitor-contribuinte seria tudo menos um ser humano, pois, controlado por um Estado, não se é sujeito, mas objeto – coisa. Ser cidadão é exercer plenamente os direitos que o sistema governamental – de forma paternalista – concede à pessoa, e se comprometer a arcar também com os deveres impostos: é pactuar com o sistema, aceitá-lo. Ser cidadão é não romper com o regime governamental. E a função do governo é, como se sabe, manter a dominação da elite sobre a massa trabalhadora.
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A burocracia surge a todo momento na obra de Kafka como uma teia em que os indivíduos se enredam voluntariamente, aceitando o absurdo de um sistema por considerá-lo natural, preexistente aos indivíduos. É como se houvesse uma burocracia celeste que frustrasse os sonhos de todos. No conto Uma Mensagem Imperial, o imperador envia um comunicado “a você, o só, o súdito lastimável”, mas uma multidão de pessoas, uma infinidade de casas e uma distância enorme entre o remetente e o destinatário impedem que a mensagem seja recebida. É interessante o fato de o narrador dirigir-se diretamente ao leitor (“você”) a quem é destinada a mensagem imperial que não chega. Mas a mensagem de Kafka chega até nós. E que mensagem seria essa? O conto – como sugere o título – é a mensagem, só que, na verdade, anti-imperial: mostra a impossibilidade de comunicação entre seres de diferentes classes, a burocracia inerente às relações interpessoais e a incompetência do próprio império.
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O elemento tragicômico da prosa kafkiana reside no fato de os acontecimentos fantásticos serem tratados de forma absolutamente banal – o absurdo ser mostrado como natural – e no fato de os indivíduos serem cúmplices, ou agentes, de sua própria opressão. Em O Veredito, por exemplo, o personagem principal se mata pulando num rio, por que seu pai – velho, fraco e doente – ordena que ele se afogue. Em Na Colônia Penal, um personagem se submete voluntariamente à tortura. O personagem de Diante da Lei desperdiça a vida esperando por uma lei que tinha como função exclusiva fazê-lo esperar.
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Hoje, submetidos à lei do mercado, milhões de pessoas padecem em filas de emprego, esperando serem incluídas num sistema em que não há lugar para elas. Na verdade, de certa forma já estão incluídas nesse sistema – que lhes confere a função de esperar por um emprego que não existe, pois a população é muito maior que as vagas de trabalho oferecidas. Não são exatamente excluídas, estão representando o papel que lhes é dado por esta sociedade: servir de exército de reserva de trabalho , mantendo baixo o nível dos salários. Vive-se na fantasia de um dia entrar na Lei – ter direitos civis garantidos, ter emprego, ser alguém. Esta fantasia se baseia na crença de que a atual sociedade é boa, e que se a situação de um indivíduo não é satisfatória isto se deve ao fato de ele estar excluído desta sociedade. Na verdade ele está incluído, incluído num sistema que dele se utiliza para legitimar sua existência e perpetuar a exploração.
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E não há como ter esperança? Certamente não há como ter esperança dentro deste sistema. Mas em Kafka surge uma tênue luz, uma possibilidade de algo diferente. Antes de morrer, Joseph K., personagem de O Processo, vê uma luz, uma janela que se abre. São as alternativas que se abrem. De forma mais explícita, no romance inacabado América, o personagem principal segue para um circo, onde todos teriam espaço para, de forma livre, exercer suas aptidões e desejos.
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É nessa possibilidade que temos de apostar, na possibilidade de algo novo, e profundamente diferente do que aí está. Não é tão difícil. Não pactuar com a dominação e não alimentar esperanças falsas já abre perspectivas revolucionárias e libertárias.
 * W.B. é técnico de atividade judiciária do Estado do Rio de Janeiro e associado do CESTRAJU - Centro Socialista dos Trabalhadores de Judiciário.

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