(Por: W.B.*)
“Tacitamente
ameaçados, estamos imobilizados dentro de espaços sociais condenados,
locais anacrônicos que se autodestroem, mas onde temos o estranho e
apaixonado desejo de permanecer, enquanto o futuro se organiza, debaixo
de nossos olhos, em função de nossa ausência já programada de maneira
mais ou menos consciente.”
(Viviane Forrester)
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“Não há pior servidão que a esperança de ser feliz.”(Carlos Fuentes)
(Viviane Forrester)
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“Não há pior servidão que a esperança de ser feliz.”(Carlos Fuentes)
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O conto Diante da Lei, de Franz Kafka, narra a história de um homem que deseja passar por uma porta e “entrar na lei”. Mas, diante da porta, há um guarda que não o deixa passar. Transcorrem dias, meses, anos, na esperança de um dia lhe ser permitido o acesso. Já no final da vida, morrendo de cansaço, o homem pergunta ao porteiro por que, se todos aspiram ao Direito, ninguém mais tentou entrar na lei em tantos anos. O guarda responde: “Esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.
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Diante da Lei integra o livro Um Médico Rural e constitui uma espécie de protótipo do romance O Processo,
onde Joseph K. é processado por um crime que não sabe qual é, e onde a
mesma história do conto é narrada por um sacerdote ao acusado. Fica
claro que, baseando-se na ideia desse conto, Kafka foi desenvolvendo uma
narrativa longa, esta viria a se transformar em seu romance póstumo, o
qual, junto com a novela A Metamorfose, é considerado sua obra-prima. Sabe-se que uma grande influência para a feitura de O Processo foi o romance Crime e Castigo,
do escritor russo Dostoiévski. Como na obra de Kafka, sempre surgem
processos judiciais nos escritos de Dostoiévski: ora processos penais,
ora civis, o que – na Rússia da época – não fazia tanta diferença já que
existia a prisão por dívidas. Até hoje, doutrinadores de Direito
aconselham aos estudantes a leitura de Dostoiévski, pois este demonstra
muito claramente que fatos que nos parecem obviamente verdade dentro de
um processo podem ser completamente falsos, e não se pode prejulgar
ninguém, pois assim se faz a pior das injustiças, pior até que os crimes
comuns (o que se vê de forma mais clara em Os Irmãos Karamázov).
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Kafka,
numa carta à noiva Felice Bauer, escreveu que quatro homens são seus
“parentes consanguíneos”: Grillparzer, Kleist, Flaubert e Dostoiévski.
Este, por sua vez, havia declarado: “todos nós descendemos de O Capote de Gógol”. O conto O Capote narra a história de um homem que trabalha a vida inteira para comprar um capote e, quando consegue, é assaltado.
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Interessante notar a semelhança do conto O Nariz de Gógol – onde um homem acorda sem nariz – e A Metamorfose (de Kafka) – onde Gregor Samsa acorda transformado em barata. Em Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski, a degradação em que o personagem se vê submerso também nos lembra um pouco A Metamorfose
(“Declaro-vos solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto.
Mas nem disso fui considerado digno” – Notas do Subterrâneo).
Dostoiévski também nos faz lembrar A Metamorfose num trecho do romance Os Demônios,
onde uma personagem narra a seguinte fábula em versos: “Andava por este
Mundo/ Uma barata. Mas veio/ Um dia cair no fundo/ Dum copo de moscas
cheio.../ Sentiu-se ali muito bem./ Deixou-se ficar. As moscas/ Começam a
protestar/ ‘Já não cabe mais ninguém!’/ Erguem aos céus o seu brado,/ E
enquanto estão a gritar/ Aproxima-se o criado...”. A personagem então
diz sobre a fábula: “Ainda não acabei (...), explicarei o resto em
prosa. O criado pega no copo e, apesar da celeuma, atira tudo ao lixo,
moscas e baratas. Mas repare (...) a barata não protesta. No que
respeita ao criado ele personifica a natureza”. Não há saída, assim como
no conto Uma Fabulazinha, de Kafka, onde um gato indica o
caminho por onde o rato poderia escapar e o devora logo em seguida: é o
humor negro e a desesperança que perpassam toda a obra kafkiana.
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Os escritos de Gógol também tinham muito humor, assim como os de Kafka, que lia para os amigos trechos de O Processo
quase chorando de tanto rir. Tanto Gógol quanto Dostoiévski eram
eslavófilos, o que na Rússia da época representava um pensamento
retrógrado, mas – pelo menos no caso dos dois – bem intencionado. No
romance Os Demônios, Dostoiévski critica veladamente o escritor
ocidentalista Turguêniev (amigo do socialista libertário Bakunin)
criando um personagem escritor, pedante, chamado Karmazinov, que teria
escrito um artigo medíocre, “cheio de pretensões poéticas misturadas com
considerações psicológicas” onde é descrito um naufrágio na costa da
Inglaterra exatamente como no conto Um incêndio no Mar de
Turguêniev. Provavelmente a rivalidade entre os dois escritores se dava
mais por razões políticas do que propriamente literárias. Realmente o
Ocidentalismo pecava por valorizar exageradamente os avanços técnicos
das sociedades européias; porém a crítica de Dostoiévski parece abarcar
todas as ideologias antimonarquistas, demonstrando um certo
reacionarismo no grande escritor russo.
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Apesar
de a esquerda ser um tanto caricaturada na obra de Dostoiévski, seus
romances demonstram aversão à tortura, à pena de morte e à exploração.
Mas o fato é que essa moral propalada por Dostoiévski não é exatamente
humanista, mais sim religiosa. A grande questão que ele nos apresenta
através do personagem Ivan Karamázov é: “Se Deus não existe, então tudo é
permitido”. Se tudo é permitido, inexiste uma moral: nada é errado.
Satisfazer as paixões seria o único objetivo do indivíduo, que não
hesitaria em causar mal ao próximo para alcançar a única finalidade da
vida: o prazer. Deus, portanto, seria indispensável para a sobrevivência
da raça humana, a qual sem ele estaria fadada à autodestruição. A fé é
imprescindível.
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Em
Kafka a fé é a grande vilã. O castelo (no romance homônimo) só é
poderoso porque todos lhe atribuem poderes, creem na força dos
funcionários do castelo, que para o agrimensor K., estrangeiro, nada
parecem ter de especial. O Deus/Pai/Estado aparece como elemento
instituidor de um sistema incompreensível ao povo – incompreensível
porque não estabelecido pelas pessoas que a ele se submetem. Um regime
de normas é criado, mas o criador não se submete a elas – é um tirano.
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A descrença é que salva em Kafka. Em O Processo,
quando Joseph K. afronta o tribunal que o acusa e nega a validade dos
procedimentos legais, até o submisso acusado Block se põe a reclamar: há
um esboço de ruptura no sistema. K. não acreditava no advogado e o
destituiu, gerando escândalo. Block cria no advogado, e assim se tornou
escravo dele, submetendo-se a seus caprichos. No universo kafkiano, não
crer é fundamental: só assim se é livre.
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Quando
se é livre, tudo é permitido? Quando se é livre, vive-se numa
coletividade livre em que as normas advêm das pessoas que a elas se
submeterão, logo serão normas que permitam o bem. Apenas existindo um
Deus/Pai/Estado, o mal seria permitido, pois as normas adviriam de uma
autoridade e não dos indivíduos que se submeteriam a elas, e que
obviamente não prescreveriam o mal para si. Kafka não tece
explicitamente considerações a esse respeito: não trata de idealização
de sociedade futura. Ele não foi um utopista, suas preocupações não eram
voltadas para as ciências sociais ou políticas. “Tudo que não é
literatura me aborrece”, dizia. Apesar disso, em 1918, Kafka elaborou o
programa para uma “Comuna de trabalhadores sem propriedade privada”, que
pode ser lido como um projeto de “kibutzim” israelita baseado nas
ideias de Piotr Kropotkin (anarquista comunista), Liev Tolstoi
(pacifista cristão anti-estatista) e Aaron David Gordon (um dos
fundadores do movimento dos “kibutzim”).
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Interessou-se
por ideias radicais já na adolescência, tendo Espinosa como primeiro
mentor espiritual, o qual – herege delicado, mas inflexível – havia sido
expulso da comunidade judaica de Amsterdã dois séculos antes. Em 1899,
aos 16 anos, Kafka entusiasmou-se com a publicação de Die Welträtsel
(Os Mistérios do Mundo) do biólogo e filósofo alemão Erneste Heinrich
Haeckel, cujas ideias baseadas em Darwin rejeitavam até mesmo a
divindade monista da Espinosa. Kafka voltou-se para um ateísmo mais
declarado. Veio a ler Niezstche. Interessou-se mais tarde pelas ideias
de Liev Tolstói e Alexandre Herzen, bem como pelo Anarquismo de Piotr
Kropotkin. Alguns biógrafos chegaram a afirmar que Kafka teve
participação ativa no órgão anarquista checo Club Mladych (Clube dos
Jovens) por volta de 1910. Porém na biografia O Pesadelo da Razão
(Ed. Imago, RJ, 1986), Ernest Pawel afirma que a participação do
escritor se restringiu a umas poucas reuniões ou demonstrações públicas
na qualidade de observador interessado.
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Não
foi exatamente um “defensor do proletariado”, mas um escritor pleno que
trabalhou para a radical libertação do ser humano. Em Kafka, a
humanidade se contrapõe ao Estado, cuja burocracia estende seus
tentáculos a todos os aspectos da vida humana. Nota-se que a linguagem
forense é usada mesmo em relações que não seriam jurídicas. Há, por
exemplo, um conto onde só aparecem pai e filho, mas cujo título é O Veredito, numa referência à condenação imposta pelo pai ao filho.
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A obra de Kafka tem claramente uma temática ligada ao Direito, como vemos nos escritos O Processo, O Novo Advogado, entre outros. Falar de Direito foi a maneira da Kafka abordar seu grande tema: o poder. O Veredito representa o poder do pai; A Metamorfose, o poder da família e da sociedade; O Processo,
o do Estado. Na época, o pensamento jurídico dominante dizia que estado
de direito e estado democrático eram sinônimos. Se algo não fosse bem
dentro de um ordenamento jurídico, interpretava-se que este sistema não
havia sido plenamente jurídico: certamente o Direito havia sido ferido
em algum ponto. Legalidade era Justiça.
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Após
a morte do escritor checo, houve a ascensão do Nazismo: as três irmãs
de Kafka – que era judeu – morreram em campos de concentração, assim
como Milena, ex-amante do escritor, que acolhia perseguidos em casa e,
apesar de não ser judia, usava uma estrela de Davi amarela (uso impostos
pelos nazistas a todos os semitas) como afronta aos hitleristas e
solidariedade ao povo judaico.
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Depois
do Nazismo, os doutrinadores de Direito ficaram desconfortáveis com a
noção de que legal é igual a justo. Como negar a juridicidade do
Nazismo, já que ele tinha normas rígidas e coerentes, exercidas sem
rupturas com a legislação? E negar a injustiça do regime seria
impossível. Foi aí que se separaram um pouco as ideias de estado de
direito e sociedade democrática. Já há, entre os juristas, quem fale de
sociedade de direito não democrática (fascista, por exemplo) e até de
sociedade democrática que não seja de direito (indígena).
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Mas Kafka, antes de tudo isso, foi mais além, colocou a juridicidade como elemento necessariamente contrário à liberdade.
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“Juridicidade”
não passaria de uma bonita palavra atrás da qual se esconde a opressão
burocrática. E a luta pela cidadania seria uma maneira de afastar as
pessoas da verdadeira questão a ser tratada: a questão da liberdade.
Cidadania aparece então como o contrário de humanidade: o
cidadão-eleitor-contribuinte seria tudo menos um ser humano, pois,
controlado por um Estado, não se é sujeito, mas objeto – coisa. Ser
cidadão é exercer plenamente os direitos que o sistema governamental –
de forma paternalista – concede à pessoa, e se comprometer a arcar
também com os deveres impostos: é pactuar com o sistema, aceitá-lo. Ser
cidadão é não romper com o regime governamental. E a função do governo
é, como se sabe, manter a dominação da elite sobre a massa trabalhadora.
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A
burocracia surge a todo momento na obra de Kafka como uma teia em que
os indivíduos se enredam voluntariamente, aceitando o absurdo de um
sistema por considerá-lo natural, preexistente aos indivíduos. É como se
houvesse uma burocracia celeste que frustrasse os sonhos de todos. No
conto Uma Mensagem Imperial, o imperador envia um comunicado “a
você, o só, o súdito lastimável”, mas uma multidão de pessoas, uma
infinidade de casas e uma distância enorme entre o remetente e o
destinatário impedem que a mensagem seja recebida. É interessante o fato
de o narrador dirigir-se diretamente ao leitor (“você”) a quem é
destinada a mensagem imperial que não chega. Mas a mensagem de Kafka
chega até nós. E que mensagem seria essa? O conto – como sugere o título
– é a mensagem, só que, na verdade, anti-imperial: mostra a
impossibilidade de comunicação entre seres de diferentes classes, a
burocracia inerente às relações interpessoais e a incompetência do
próprio império.
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O
elemento tragicômico da prosa kafkiana reside no fato de os
acontecimentos fantásticos serem tratados de forma absolutamente banal –
o absurdo ser mostrado como natural – e no fato de os indivíduos serem
cúmplices, ou agentes, de sua própria opressão. Em O Veredito,
por exemplo, o personagem principal se mata pulando num rio, por que seu
pai – velho, fraco e doente – ordena que ele se afogue. Em Na Colônia Penal, um personagem se submete voluntariamente à tortura. O personagem de Diante da Lei desperdiça a vida esperando por uma lei que tinha como função exclusiva fazê-lo esperar.
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Hoje,
submetidos à lei do mercado, milhões de pessoas padecem em filas de
emprego, esperando serem incluídas num sistema em que não há lugar para
elas. Na verdade, de certa forma já estão incluídas nesse sistema – que
lhes confere a função de esperar por um emprego que não existe, pois a
população é muito maior que as vagas de trabalho oferecidas. Não são
exatamente excluídas, estão representando o papel que lhes é dado por
esta sociedade: servir de exército de reserva de trabalho , mantendo
baixo o nível dos salários. Vive-se na fantasia de um dia entrar na Lei –
ter direitos civis garantidos, ter emprego, ser alguém. Esta fantasia
se baseia na crença de que a atual sociedade é boa, e que se a situação
de um indivíduo não é satisfatória isto se deve ao fato de ele estar
excluído desta sociedade. Na verdade ele está incluído, incluído num
sistema que dele se utiliza para legitimar sua existência e perpetuar a
exploração.
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E
não há como ter esperança? Certamente não há como ter esperança dentro
deste sistema. Mas em Kafka surge uma tênue luz, uma possibilidade de
algo diferente. Antes de morrer, Joseph K., personagem de O Processo, vê uma luz, uma janela que se abre. São as alternativas que se abrem. De forma mais explícita, no romance inacabado América, o personagem principal segue para um circo, onde todos teriam espaço para, de forma livre, exercer suas aptidões e desejos.
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É
nessa possibilidade que temos de apostar, na possibilidade de algo
novo, e profundamente diferente do que aí está. Não é tão difícil. Não
pactuar com a dominação e não alimentar esperanças falsas já abre
perspectivas revolucionárias e libertárias.
* W.B. é técnico de atividade judiciária do Estado do Rio de Janeiro e associado do CESTRAJU - Centro Socialista dos Trabalhadores de Judiciário.
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