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segunda-feira, 16 de março de 2020

O Serventuário Que Virou Suco ou a Mente Que Virou Queijo


(Por: W.B.*)


O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro impõem que, para progredir na carreira, suas servidoras e servidores se submetam a pelo menos trinta horas de cursos por ano, ministrados pela Escola de Administração Judiciária (ESAJ). Esta teria como missão, segundo a Administração do TJ-RJ, “promover ações de capacitação para formação e aperfeiçoamento de servidores de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo PJERJ”.
A atual direção do Sind-justiça – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (eleita em outubro de 2011 e reeleita em dezembro de 2014) lamentavelmente não se opõe à obrigatoriedade dos cursos da ESAJ para progressão e promoção na carreira. Isso ficou patente já a partir daquela que foi a última assembleia setorial do estado acerca do reajuste salarial de 2012, ocorrida na calçada da Rua Dom Manuel, nas imediações do Fórum Central, na capital fluminense.
Na ocasião, respondendo a uma fala do analista judiciário Vílson Siqueira, o então coordenador geral do sindicato José Carlos Arruda defendeu os cursos da ESAJ como parâmetro para promover serventuários, alegando que outros órgãos também operavam promoções sob critério semelhante. O Sr. José Carlos, que já fazia parte da anterior direção do Sind-justiça, usufruía de licença sindical e, talvez por isso, não sentisse o quanto esses cursos estressam e até tumultuam a própria rotina laboral de cada pessoa que – de fato – trabalha dentro do tribunal. Ao fim da rodada de assembleias regionais da época, a direção do Sind-justiça conseguiu trocar a data-base da categoria de maio para setembro (o que o nefasto politiqueiro Sérgio Cabral, do PMDB-RJ, já havia tentado em 2007 e 2008). Assim, o sindicato cedeu à proposta da presidência do Tribunal de Justiça, que – como compensação pela mudança do marco de reajuste salarial anual – prometia dinamizar as progressões funcionais. Estas, no entanto, continuaram condicionadas aos famigerados cursinhos da ESAJ.
Independente de eventuais divergências com os indivíduos que estejam na direção sindical, cada pessoa que integra a classe trabalhadora estatutária no TJ deveria se sindicalizar e pelejar por uma verdadeira democracia no sindicato e no trabalho. Todas as servidoras e servidores do judiciário estadual deveriam valorizar o importante organismo que é o Sind-justiça: uma relevante ferramenta para a organização das lutas da categoria serventuária. Presença em assembleias, adesão a greves e protestos – buscando à união a partir da manifestação da pluralidade de opiniões – é o que pode nos afastar das alienações impostas pela Administração do Poder Judiciário.
Tentando escapar das lavagens cerebrais promovidas pelo TJ-RJ, algumas pessoas que ocupam cargos de técnico de atividade judiciária ou analista judiciário até deixam de prestar os referidos cursos da ESAJ, mesmo sabendo dos grandes prejuízos para a subida de padrão e classe (níveis na carreira funcional). Afinal, o que a ESAJ promove para desagradar tanto a categoria serventuária? Abstraindo da questão de obtenção de promoções, nos cabe perguntar: a quem servem essas aulas?


Exemplificando: um curso dado na ESAJ

No segundo semestre de 2011, foi oferecido o curso Noções Básicas da Norma ISO 9001:2008 com doze horas de duração, conferindo 24 pontos para ascenção na carreira. Pessoas lotadas em cartórios com certificação de qualidade conferida pela ISO foram impelidas a se inscreverem na turma para “se capacitarem”.
 

ISO é uma organização não-governamental fundada em 1947, em Genebra, e hoje presente em cerca de 190 países. A sua função seria promover a normatização de produtos e serviços, para que a qualidade deles fosse permanentemente melhorada.
Por extenso, a denominação dessa organização mundial é International Organization for Standardization, que geraria siglas diversas nos idiomas dos diferentes países alcançados pelos tentáculos do grupo: IOS em inglês, OIN em francês, OIP em português etc. Para evitar essa pluralidade de siglas, os fundadores decidiram adotar (uniformizadoramente em todo o mundo) o acróstico ISO, que equivale a um afixo de origem grega presente em idiomas modernos, como a própria língua portuguesa, nesta assumindo a significação de "igual" – integrando, como prefixo, as palavras: isóceles, isótopo, isométrico e outras. A ISO (como indica o vocábulo original grego) prega a padronização, tentando implementar sistemas nos quais os produtos sigam todos o mesmo processo produtivo, para todas as peças.
As normas ditadas interferem nos processos internos das empresas, moldando a conduta dos trabalhadores, que são hipocritamente designados “colaboradores” – denominação que mascara o conflito patrão-empregado, inerente ao sistema econômico capitalista. Há contínuo monitoramento do ambiente de trabalho: controle constante sobre a massa trabalhadora, estimulada a manifestar contentamento e boa-vontade com relação ao labor diário, não se eximindo, porém, de dar sugestões para o contínuo incremento da produção. A expressão chave nos textos da ISO é: “processo contínuo de melhoria do sistema de gestão da qualidade”. Segundo a ideologia do grupo, é sempre possível fazer cada vez mais, usando cada vez menos recursos. Em prol do lucro, espremem-se ao máximo os recursos, inclusive os recursos humanos – cada vez menos humanos, mais achatados pelo rolo compressor produtivista.
No curso oferecido pela ESAJ no segundo semestre de 2011, foi possível sentir a pressão da ISO logo pela indagação feita aos alunos no primeiro dia de aula. O problema não foi tanto a pergunta em si, mas a condição dada para que ela fosse respondida. O professor questionou, a cada pessoa inscrita no curso, qual era o motivo para ela estar ali. Mas antes alertou que não aceitaria como resposta que alguém dissesse ter ido lá simplesmente por ordem do chefe.
Os alunos se viram forçados, meio constrangidamente, a criar respostas inverídicas para a pergunta feita, pois a maioria só estava lá mesmo porque era obrigada. Cada resposta (falsa) era recebida pelo professor com um sorriso de aprovação e alguns elogios ao “interesse” e “entusiasmo” do estudante. Os menos convincentes, que involuntariamente deixavam transparecer certo enfado em relação ao curso, ouviam que – em breve – assistiriam a um vídeo que os ajudaria a ter uma postura mais “pró-ativa”.


Quem Mexeu no Meu Cérebro?

Durante os encontros, sempre que alguém esboçava algum grau de crítica sobre os valores apregoados, o palestrante repetia as explicações sobre as vantagens dos sistemas de gestão. Ocorre, porém, que não se tratava – na maior parte das vezes – de alguma dúvida do aluno, mas simplesmente duma discordância de opinião em relação ao que estava sendo propagado ali. Porém divergências da pessoa inscrita no curso eram sempre tratadas como incompreessão do conteúdo da aula. Nas entrelinhas, rotulava-se o aluno divergente como inapto a compreender ou então como alguém inflexível, rígido, avesso a mudar seus paradigmas. As “explicações” do instrutor se repetiam mais e mais e o estudante se sentia impelido a “concordar” com ele, para não ser visto pelos outros como um entrave ao andamento das aulas. A suposta concordância do aluno era então elogiada pelo mestre e, assim, os demais se sentiam estimulados a também aderirem àquelas ideias. Silenciados os esboços de polêmica, era hora de aprofundar a visão de mundo do curso através da utilização de recursos audiovisuais. Exibiu-se então um desenho animado com o curioso título “Quem Mexeu no Meu Queijo?”.
No curtametragem de animação, foram apresentados quatro personagens: os ratos Sniff e Scurry e os duendes Hem e Haw, todos habitantes dum mesmo labirinto. Apesar de suas ações instintivas, os roedores, a exemplo dos desenhos de Walt Disney, figuram antropomorficamente: são bípedes, usam tênis de corrida e têm o mesmo tamanho dos hominídeos. Estes, apesar de chamados de duendes, são nitidamente humanos na maneira de se vestir, andar, agir e pensar. Ratos e homenzinhos tinham em comum a necessidade de queijo, sendo este a única aspiração e razão da existência de cada personagem. Assim, todos os dias, roedores e duendes saíam pelo labirinto em busca do idolatrado queijo.

Os instintivos Sniff e Scurry saíam procurando dum corredor para outro. Se não encontravam num, logo mudavam o caminho sem parar pra pensar. Lembravam os locais pelos quais já haviam passado e logo seguiam para outra parte. Sniff se destacava pelo faro aguçado, que ajudava a achar a direção desejada; Scurry, por sua vez, era mais ligeiro. Apesar de se perderem e até darem de cara nas paredes, acabavam encontrando o caminho até o adorado queijo. Hem e Haw faziam suas buscas de maneira menos instintiva, mais racional, porém isso não lhes conferia vantagem alguma em relação aos ratos.
Após algumas buscas, finalmente os quatro encontraram, no interior do labirinto, uma divina “montanha de queijo”, num local denominado Posto C. Todos os personagens, então, passaram a, diariamente, ir logo pela manhã à mina de queijo e ficar por lá devorando seu tesouro até anoitecer. Entretanto os ratos mantiveram a rotina de acordar cedo, calçar os tênis e correr até o Posto C, portando pranchetas nas quais anotavam possíveis rotas futuras para outras minas de queijo quando fosse necessário. Enquanto isso, os humanos passaram a acordar tarde, vestir-se sem pressa, andar preguiçosamente descalços, acreditando que jamais precisariam procurar queijo noutro lugar.


A dupla de ratos – indubitavelmente mostrada no desenho como exemplo a ser seguido – chegava ao Posto C bem cedinho e, antes de se alimentar, cheirava o queijo e fazia uma vistoria na área para ver se havia ocorrido alguma mudança em relação ao dia anterior. Um dia, ao chegarem pela manhã, Sniff e Scurry descobriram que o queijo havia sumido. Não se surpreenderam. Sem tecer nenhuma teoria ou pensamento crítico acerca do fato, aceitaram a mudança da situação no posto. Não criticaram a realidade a sua volta, só resolveram simplesmente procurar queijo noutro lugar. Não raciocinaram absolutamente nada, só agiram imediata e instintivamente.
Os humanos Hem e Haw (mostrados como exemplo do que não deve ser feito) se revoltaram com a ausência de queijo no Posto C e puseram-se a reclamar. Hem passou a gritar: “Não há queijo? QUEM MEXEU NO MEU QUEIJO?”.
Ardilosamente, na historinha criada para servir de parábola às realidades do mundo do trabalho, ninguém mexeu no queijo. Este só acabou porque, sendo consumido dia a dia, teria que chegar ao fim nalgum momento. Isso torna sem sentido a queixa de Hem, pois não haveria culpados pela situação ruim pela qual os dois humanos estavam passando. Queixas, reivindicações, protestos seriam vazios nesse contexto. O desenho dá a entender que, na vida real, não devemos nos insurgir contra as mudanças que são ruins para nós, pois essas mudanças não teriam sido tramadas por ninguém: seriam só uma consequência natural dos tempos – tal como o fim do queijo de Hem. Entretanto, no mundo real, as modificações não são fruto natural do fluxo inexorável da História, elas são consequência de decisões políticas e gestões econômicas exploratórias. Claramente, o desenho animado tem o objetivo de nos convencer a aceitar calados todas as mudanças impostas pelo patronato e pelo Estado, amoldando-nos a elas.
Quem se recusa a se adaptar, a achar uma saída individual que ignore as injustiças do mundo, é comparado – pela história – ao ridículo personagem Hem. Este é mostrado como reclamão, preguiçoso, inflexível e covarde. Vendo esse filme, como será que se sentiram aqueles alunos da ESAJ que são entusiastas do incomformismo, da luta por uma realidade diferente, socialmente justa? Certamente sentiram-se comparados a Hem: pusilânime, comodista, resmungão, imaturo, fadado a morrer por sua própria teimosia.
Quem conhece bem o cinema brasileiro deve ter percebido uma profunda semelhança entre a situação real acontecida no espaço da ESAJ com uma cena (ficcional) ocorrida com o personagem Deraldo, no filme nacional O Homem que Virou Suco, de 1979.


Deraldo era serventuário?

Em 1980, O Homem que Virou Suco levou o Troféu Candango (melhor ator) do Festival de Brasília. Foi vencedor do Grande Prêmio do Festival de Moscou, um dos mais importantes do mundo, em 1981. No mesmo ano ganhou três troféus Kikito no Festival de Gramado: melhor roteiro, ator (José Dumont) e ator coadjuvante (Denoy de Oliveira). Dumont foi premiado ainda, em 1983, no Festival de Huelva, na Espanha, por sua atuação neste nosso marco do cinema.

A obra cinematográfica mostra os problemas pelos quais passa o retirante nordestino através de passagens às vezes líricas, outras dramáticas; mas também há momentos cômicos bastante interessantes. O protagonista (Deraldo, muito bem interpretado por J. Dumont), imigrante do nordeste, se vê obrigado a passar pelos mais diversos empregos. Enfrenta situações exploratórias e toda sorte de opressões. Responde a elas às vezes através da zombaria, do riso e, noutros momentos, pelo xingamento aberto, pela insubmissão aos patrões manifestada através de sua orgulhosa postura de cabra-macho nordestino, avesso aos bem comportados valores burgueses. Assim, mesmo encarando fome e privações diversas, ao fim do dia Deraldo recostava a cabeça em seu travesseiro surrado e dormia o sono dos justos, orgulhoso de sua maneira de ser: forte e insubmisso como um guerreiro do cangaço. Mas, certo dia num curso dado numa empresa, seria submetido a ver um desenho animado para “se capacitar” ao trabalho. É assim que, lá pelos 50 minutos de projeção de O Homem que Virou Suco, nos deparamos com uma das mais representativas cenas desse genial filme com roteiro e direção de João Batista de Andrade.
O personagem Deraldo – contratado para trabalhar numa obra de metrô na capital paulista – é chamado a uma sala junto com outros trabalhadores. Ali, ele se vê diante dum homem bem penteado, de óculos, trajando terno e gravata. O elegante sujeito fala da experiência que sua empresa tem em capacitar pessoas ao trabalho. Diz que a preparação dos empregados para a labuta se dará através da exibição dum “audiovisual” durante três dias. Trata-se de um desenho animado que traça a história do personagem Antônio Virgulino da Silva (desenhado como cangaceiro) ao vir trabalhar em São Paulo.
A animação mostra Virgulino se empregando numa obra, visando domar a “cobra gigante”, que é o metrô paulista. O caricato personagem do desenho rasga os cartazes que determinam “respeitar o chefe”, ameaça seus superiores hierárquicos com uma peixeira, desobedece a ordens dadas. Acaba perdendo o emprego e sendo ridicularizado pelos próprios colegas.
Após assistir a esse desenho animado, Deraldo se sente humilhado. Identifica-se com o risível personagem Antônio Virgulino da Silva que, no dizer do narrador: “tinha fama de herói, mas era um palhaço”. À noite, Deraldo mal consegue dormir: é assolado por pesadelos, nos quais se vê caracterizado como cangaceiro, pelas ruas de São Paulo, ridicularizado pelos transeuntes que o apontam e estigmatizam.

Em O Homem que Virou Suco, esse é apenas um dos sofrimentos passados pelo protagonista, uma poeta popular que se vê forçado a trabahar para o patronato, quando (na verdade) desejava mesmo se dedicar exclusivamente ao cordel. Da mesma forma que no longametragem colorido da década de 70, ocorre em nosso século 21 no Tribunal de Justiça-RJ. Neste, em virtude do excesso de atribuições, muitos servidores públicos se veem obrigados a sacrificar seus gostos, deixando de exercer dotes artísticos.
Ao longo dos 95 min do memorável filme, vemos que problemas financeiros, pressão dos vizinhos, exigência de documentos, tudo atrapalha o personagem Deraldo em sua trajetória em Sampa. Para o servidor do poder judiciário fluminense, na nossa sociedade atual, os reveses ainda não são tão dramáticos quanto os dos subempregados da capital paulista. Porém se pode dizer que, apesar da diferença de intensidade, estamos diante de opressões análogas.
Entre servidores do TJ-RJ já foram ouvidas as mais estarrecedoras histórias: pessoas que trabalham gratuitamente durante as férias para não perder determinados comissionamentos; outras que, visando se manter em função de secretário de juiz, aceitam não gozar licença por faleciemento de pessoa da família (a chamada licença nojo); servidores obrigados – por muito tempo – a passar diariamente seus medicamentos e refeições através de aparelhos de raio X dos fóruns em que trabalham, podendo sofrer consequências péssimas para sua saúde...
Como se não bastasse tudo isso, a categoria serventuária ainda se vê submetida a lavagens cerebrais como as práticadas por disciplinas ministradas na ESAJ. No curso em questão, Noções Básicas da Norma ISO 9001:2008, utilizou-se amplamente material inspirado no livro de autoajuda estadunidense “Quem Mexeu no Meu Queijo?” (Who Moved My Cheese?), publicado em 1998 pelo psicólogo Spencer Johnson. Um campeão de vendas, mas cujo conteúdo ideológico só favorece mesmo a uma minoria bilionária.


A alienação é Best-seller

O autor Spencer Johnson é um fenômeno de vendas. Tem livros traduzidos para mais de vinte idiomas, somando mais de dez milhões de exemplares vendidos pelo mundo a fora. Nascido no estado de Dakota do Sul (região centro-oeste dos EUA), Johnson esposa valores típicos do Capitalismo estadunidense.
Seu conhecimento em Psicologia é habilmente usado em Quem Mexeu no Meu Queijo?, induzindo os leitores a se sentirem obrigados a concordar com a tese central do livro. Este, não por acaso, tem um capítulo introdutório que busca desqualificar previamente qualquer crítica acerca da moral da “parábola” que será contada. No tal preâmbulo, intitulado “Uma Reunião: Chicago”, vários antigos colegas de escola conversam sobre suas trajetórias de vida profissional, concordando sobre a necessidade de aceitarem sempre as mudanças que vêm a ocorrer. Então um dos amigos, chamado Michael, fala duma historinha que seria muito boa e que ajudara vários colegas a lidarem melhor com as transformações no mundo do trabalho. Segundo Michael, quase todos em sua empresa haviam gostado da históra e teriam se beneficiado dela, porém ele acrescenta:
Quando um dos nossos executivos seniores, que estava tendo dificuldade de adaptação, disse que a história era perda de tempo, outras pessoas zombaram dele dizendo que sabiam qual personagem ele era na história – aquele que não aprendeu nada e não mudou.”
Assim, antes de a fábula começar a ser contada (no capítulo seguinte), já somos coagidos a elogiá-la, pois – se não o fizermos – seremos fatalmente comparados ao ridículo personagem Hem, “que não aprendeu nada e não mudou”. É interessante notar que o autor Spencer Johnson não insere em seu livro nenhuma crítica aos colegas que tinham zombado do “executivo senior” que não gostara da história.
Longe de apresentar alguma rejeição a práticas opressivas no ambiente de trabalho, o livro dá estímulo ao bullying ou ao assédio moral horizontal contra aqueles que seriam avessos a determinadas mudanças – logo comparados ao personagem Hem. Este, ao contrário do duende Haw, não se convence a continuar procurando queijo pelo labirinto. Hem só fica se lamentando, chorando, teimoso, sentado no Posto C, sem fazer nada em prol de si mesmo. Até recusa pedacinhos de queijo novo trazidos por Haw. Hem, comodistamente, só espera que o velho queijo resurja no mesmo lugar, como mágica. Condena-se a morrer de fome por seu próprio comodismo.
Isso não se parece com o discurso da extrema direita, que costuma qualificar os famintos como pessoas que não têm iniciativa e “empreendedorismo”? Não é dito, por fascistas, que essas pessoas passam fome por culpa delas próprias?
Quem Mexeu no Meu Queijo? propagandeia um darwinismo social, segundo o qual devemos nos adaptar individualmente ao mundo a nossa volta e deixar que os inaptos pereçam. O personagem Hem sucumbiu por sua própria covardia, a moral da história é que o mundo é dos fortes: um labirinto em que só os mais aptos sobrevivem, e onde é natural que pereçam os medíocres. Aliás, vale relembrar que uma apostila doutro curso da ESAJ já havia enaltecido a montadora japonesa Nissan por haver desenvolvido um plano de avaliação de desempenho que demitiu milhares de pessoas. Na apostila em questão, lá pelo ano 2010, escreveu-se – elogiosamente – que a avaliação de desempenho serviu ao objetivo de “expulsão da mediocridade”.
A ESAJ tem enaltecido continuamente firmas transnacionais opressoras, tidas como exemplo a ser seguido. E tem adotado material teórico que favorece visões desses grupos. Quem Mexeu no Meu Queijo? traz, em seu final uma lista de empresas em que foi adotado. Entre essas são citadas: Nestlé, Kodak, IBM e outras.
Nestlé é uma empresa suíça que obteve lucros monumentais em contratos com a Alemanha nazista. E, durante a Segunda Guerra Mundial, manteve milhares de escravos em suas linhas de produção. Segundo um relatório elaborado pelo historiador suíço Jean François Bergier, a Nestlé não só usou mão de obra forçada em sua subsidiária alemã como a matriz estava a par de tudo. Informações acerca disso podem ser vistas no artigo “Os aliados ocultos de Hitler” publicado na revista Superinteressante, escrito por Cláudia de Castro Lima e acessível no endereço – http//super.abril.com.br/historia/os-aliados-ocultos-de-hitler/. 
Kodak, IBM e outras empresas capitalistas apoiaram o monstro nazista
O referido artigo também cita a IBM, empresa que também utiliza hoje o livro de Spencer Johnson. A IBM construiu máquinas personalizadas para os nazistas. Com elas, podia-se controlar tudo, do fornecimento de petróleo aos horários dos trens para os campos de morte. Podia-se até monitorar contas bancárias de judeus vítimas do Holocausto.
Sobre a Kodak, que igualmente adota Quem Mexeu no Meu Queijo?, também há informações na revista Superinteressante. Durante a Segunda Guerra Mundial, uma filial alemã da Kodak usou trabalhadores escravos vindos dos campos de concentração. Várias outros ramos europeus da empresa fizeram alianças com o governo nazista. Wilhelm Keppler, um dos principais assessores econômicos de Hitler, tinha ligações profundas na Kodak. Quando o Nazismo começou, Keppler aconselhou à Kodak e várias outras empresas norte-americanas a demitir todos os empregado judeus em troca de benefícios.
Benefícios a todo custo. É isso que o ideário empresarial capitalista nos alimenta a buscar. Segundo tal sistema de pensamento, os mais aptos sobrevivem neste labirinto que é a sociedade. A meta é que não passemos de ratinhos em busca de queijo, andando pra lá e pra cá sem raciocínio algum. Se alguém morrer, isso seria culpa da própria pessoa que não soube se adaptar: não teve iniciativa ou coragem.
Notemos como se chama o duende que pereceu ao fim da história: Hem. O nome traz grande semelhança com o vocábulo inglês “hen”, que significa galinha. Hen é um termo extremamente pejorativo que assume o significado de covarde, semelhante a expressões portuguesas modernas “bunda-mole” ou “cocoroca”.
É isso que devemos aprender em cursos de capacitação? Enaltecer os bem sucedidos e desqualificar os demais?
Tenhamos cérebros humanos. Ousemos viver fora dos labirintos nos quais os poderosos insistem em nos encarcerar. A vida é muito mais do que zanzar por corredores vazios para deleite duma elite que busca nos seduzir com suas iscas ilusórias. Não sejamos animalizados e presos nas labirínticas relações competitivas que nos impedem de exercer a solidariedade. Esta – a solidariedade – é que dá sentido e confere valor à convivência humana. Resumir a vida a alguma conquista individual é reduzir-nos a meros ratinhos de laboratório, correndo numa rodinha giratória, atrás dum queijo que jamais se alcança.

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